quinta-feira, 23 de outubro de 2008

ARTE CONTEMPORÂNEA E O MUSEU NA ERA GLOBAL

Última modificação 28/08/2008 05:38

Palestra proferida durante a conferência “L’Idea del Museo: Identità, Ruoli, Prospettive” entre os dias 13 e 15 de dezembro de 2006, organizado pelo Musei Vaticani no contexto das festividades dos 500 anos dos museus do Vaticano “Quinto Centenario dei Musei Vaticani. 1506-2006”

Hans Belting
1. Introdução

Durante muito tempo, os museus de arte pareciam ter nascido com uma identidade segura, guardada pela sua designação de exibir arte e até de provê-la com o ritual necessário de visibilidade. No entanto, agora, à medida que entramos na era global, parecem enfrentar um novo desafio. Resta saber se o museu de arte, enquanto instituição, com uma história de pelo menos duzentos anos no ocidente, está preparado para a era da globalização. Não existe uma noção comum da arte que necessariamente possa ser aplicada a todas sociedades no mundo inteiro. A Arte Contemporânea, sobre a qual me concentrarei a seguir, levanta questões novas e difíceis. Por um lado, a produção de arte enquanto prática contemporânea está se expandindo no mundo inteiro. Por outro, precisamente, esta recente explosão parece ameaçar a sobrevivência de qualquer noção segura de arte, se é que ainda existe alguma, mesmo no ocidente. Os novos museus de arte vem se estabelecendo em muitas partes do mundo, porém, será que a instituição sobreviverá a esta expansão? A presença de Arte Contemporânea não ocidental em bienais e coleções privadas não é uma indicação clara se sua institucionalização é permanente e coleções públicas seguirão ou se, contrariamente, a nova produção de arte irá minar o perfil do museu. Em outras partes do mundo, faltam aos museus de arte história ou estão sofrendo devido à história da colonização. Resumindo, analisarei o Museu à luz de um ramo da Arte Contemporânea que chamo de arte global.
Deixe-me, no entanto, mencionar rapidamente a ocasião para a qual preparei a princípio este trabalho. Em 2006, os Museus do Vaticano, em Roma, organizaram uma conferência por ocasião de seu aniversário de 500 anos chamada: “A idéia do Museu: identidade, papéis e perspectivas.” Tal momento me ofereceu a oportunidade de tratar da questão do porquê a Igreja Católica, uma instituição religiosa viva, manter museus de arte em primeiro lugar. A resposta pode ser rapidamente extraída de argumentos históricos. O Vaticano, como um todo, é uma instituição viva e, ao mesmo tempo, um museu que mantém coleções e também serve como um lugar de memória. A questão merece um olhar mais detalhado: os museus do Vaticano não começaram como tesouros da Igreja, muito pelo contrário, como uma coleção de estátuas antigas, o que pode parecer uma escolha surpreendente para a Igreja. As esculturas de deuses antigos da coleção não eram mais identificadas como sendo pagãs, e sim, redefinidas e consideradas obras de arte. Daí, o objetivo das coleções ser a construção de uma nova idéia de “arte” que pudesse autorizar, inclusive, a visão de deuses pagãos nus. Foi necessário que os itens colecionados se tornassem primeiro obsoletos para que pudessem adquirir o status de obras de arte, o que, por sua vez, dependia do seu status museológico.
Antes de deixar o Vaticano, consintam-me analisar o fenômeno a partir de outro ângulo. Fora das portas do Museu, a Igreja favorecia a veneração viva de imagens santas que nunca adentraram a categoria de obras de arte. Eram vistas com os olhos da fé mas não necessitavam de um gosto artístico. Durante muitos séculos, Roma foi a Meca da Igreja Católica; cada cristão deveria venerar o a Face Sagrada da catedral de São Pedro, o “verdadeiro ícone”(1), pelo menos uma vez na vida. Hoje em dia, a atenção para tais imagens tem perdido muita importância, com exceção de trações globais tais como “Santo Sudário” em Turim. Contudo, a Igreja, aparentemente, redescobriu a necessidade de visualizar sua prática com uma nova ênfase nas imagens. No Ocidente, onde a Reforma e a Contra-Reforma deixaram o processo de modernização com memórias obscuras e até medos, inclusive a arte está sendo reconsiderada uma nova aliada para mobilizar os crentes.
Mas duvido que isto seja uma escolha sábia. De fato, a Igreja está passando atualmente pela pressão da mídia de massas cuja presença visual no cotidiano mudou o mundo. O último Papa serviu-se brilhantemente desta tele-presença ao instrumentalizar seu próprio ícone. No entanto, este processo é irreversível. Filmes já provaram ser forças muito fortes em projetos missionários globais, principalmente nas mãos dos Estados Unidos. Marshall McLuhan, o profeta da era da Mídia, era um católico fervoroso que sonhava com o fim da Galáxia de Gutenberg, compreendida como uma herança da Reforma, e proclamava o surgimento da nova cultura da mídia no espírito de uma partida ecumênica visual e completa.(2) A arte não fazia parte de sua visão e o museu, para o qual me volto novamente , certamente está do outro lado da rua.

2. Artes Étnicas

Para poder seguir com o meu assunto principal, me permitam fazer uma guinada perigosa e ligar a dicotomia da prática viva e a presença do museu que encontramos na Igreja Católica para o destino nefasto das supostas artes étnicas. Certamente, não quero arriscar mal-entendidos e simplificações exageradas, mas talvez não seja tão pouco plausível lembrar que os artefatos étnicos nunca foram criados como “arte” no sentido ocidental da palavra. Serviam a rituais étnicos, que de muitas formas podem ser considerados de religiões autóctones. É bem sabido que o roubo de tais objetos, que acabaram em coleções ocidentais, junto com o zelo missionário dos colonizadores, erradicou religiões vivas. O museu não se tornou um ameaça à sobrevivência de culturas inteiras, e o mundo da arte se apropriou da cultura material de muitas religiões.
Mesmo em seus países de origem, os artefatos étnicos pareciam bizarros e mal utilizados ao entrarem em museus do tipo colonial. Os públicos locais já não podiam reconhecer as máscaras que haviam perdido sua referência com os corpos vivos, parecendo objetos inúteis em uma coleção na qual os antigos donos tinham perdido o controle do significado protegido dos objetos. O problema, mais do que nada, era o choque com as estratégias de memória do ocidente que resultavam em uma reificação e coisificação enquanto a memória autóctone podia sobreviver apenas através de sua performance viva. A perda de acesso foi compreendida como privação e o museu colonial se transformou em um “cemitério” de objetos mortos, para citar Mamadou Diawara. Em tempos pós-coloniais, contra-estratégias levaram, então, à re-dedicação dos museus aos assim chamados “museus do povo”. O propósito de tais projetos é “retornar o museu ao seu povo,” como Bogumil Jewsiewicki descreve seus dois projetos, no Haiti e no Congo. No entanto, não se pode ter certeza em absoluto que os públicos locais iriam querer o retorno de algo com os qual nunca se preocuparam.
É também no ocidente, onde as artes étnicas foram introduzidas como uma moeda estrangeira de arte, que a questão dos museus se tornou fonte de muita controvérsia já que dois tipos logo se opunham e a questão permaneceu em aberto: se uma bela máscara deveria ou não entrar no museu etnográfico ou no museu de arte.(3) Neste caso, lhe foi negado o seu lugar dentro da arte no sentido da “arte mundial”. Em outro caso, perdeu os seus laços com sua cultura de origem e se tornou indiferente a qualquer significado local. Após um longo debate caloroso, o destino das assim chamadas “Arts Premiers”(Artes Primeiras), um novo rótulo para “arte primitiva,” foi criado com a fundação do Musée du Quai Branly; um nome, suspeitosamente, neutro. Este abrigou coleções que antes estavam no Musée des Colonies e também algumas do Musée de l’Homme.(4) O novo Museu é um museu de arte levemente disfarçado, já que esconde a antiga divisão entre seus dois tipos. Após sua abertura, a topografia da memória foi claramente distribuída por diversas instituições em Paris. O novo museu reúne o patrimônio da África e da Oceania, e o Musée Guimet apresenta as artes da Ásia. O Louvre possui estas antiguidades, inclusive egípcias, que os franceses consideram parte de seu próprio patrimônio, mas o novo departamento islâmico abre uma janela para um mundo maior.
Este lugar do novo Museu no mapa colonial, um mapa no cérebro, é confirmado por uma ausência que ninguém parece notar. Estou falando da ausência da Arte Contemporânea destas partes do mundo onde os artefatos dos tempos coloniais e pré-coloniais foram produzidos. Esta ausência advém de muitas razões, a maior delas causada pela resistência da Arte Contemporânea indígena classificada de étnica. Entretanto, isto cria uma defasagem que revela um problema global no cenário artístico. Onde é que estão os artistas não-ocidentais que recentemente foram “incluídos” no mercado das artes? Eu arriscaria argumentar que a Arte Contemporânea, em um contexto global, invade o lugar da antiga produção étnica. Tal argumento precisa ser protegido contra muitos possíveis mal-entendidos. Não estou dizendo que a produção étnica simplesmente continua no que atualmente consideramos arte, ao invés disto, ocorre uma defasagem ainda maior entre estas tradições autóctones que são exauridas e interrompidas, e, por outro lado, outra coisa que ainda precisa de definição e, ainda não entrou nos museus: a arte contemporânea não ocidental.

3. Arte Contemporânea

Porque seleciono um fenômeno que ainda não é uma preocupação grave para a maioria dos Museus de arte hoje? E como é que a atual Arte Contemporânea difere da Arte Contemporânea de vinte anos atrás? Testemunhamos muitas redefinições na produção artística nas últimas cinco décadas. Houve a grande rebelião nos anos 60, que alguns consideram o surgimento de uma segunda modernidade. A arte de exposições clássicas, montadas no “White Cube” (galeria de arte inglesa),(5) foi desvalorizada, e a performance se tornou uma das maiores atividades artísticas mundiais. Em um próximo passo , vimos a introdução de novos meios tais como instalações de vídeo e assim por diante. Porém, tais tendências se deram normalmente no mundo da arte ocidental enquanto agora novos artistas do que antes era chamado de “terceiro mundo” estão liderando o curso dos acontecimentos. Pelo menos, nada de importância similar em termos de impacto sobre o Mercado está tão presente no ocidente. Basta ver o exemplo da invasão chinesa e sua calorosa aclamação por parte dos colecionadores ocidentais.
Para poder analisar o significado deste fenômeno, deixe-me organizar um mapa de idéias e termos com os quais este se relaciona freqüentemente de forma contraditória. Temos a história ambivalente do modernismo que hoje em dia encontra resistência ou oposição clara. Artistas, na maior parte das vezes, lutam para recuperar as reivindicações hegemônicas deste patrimônio ocidental, sendo que este acaba sendo um fardo não muito bem-vindo para aqueles que chegaram depois e não conseguiram encontrar o seu lugar na história do modernismo. Alguns buscam escapar deste patrimônio ou buscar genealogias alternativas que ofereçam possíveis definições. O Modernismo constantemente funcionou como uma barreira protegendo a arte ocidental da contaminação da arte étnica ou popular, e marginalizou a produção local considerando-a não profissional. Como resposta a isto, a arte não ocidental por vezes agiu com uma antítese à reivindicação de universalismo inerente ao modernismo.
A idéia do Modernismo alegava possuir uma autoridade universal e assim, de fato, exercia o poder colonial. A arte modernista pode ser descrita melhor como uma arte de vanguarda que reflete a idéia de progresso linear, conquista, e novidade, testemunhando assim contra sua própria cultura considerada uma cultura morta e de passado que não é bem-vinda. Vanguarda, que, como deveríamos notar, era originalmente um termo militar, possibilitou medir o progresso e a inovação dentro do contexto artístico. Por isto a história da arte se tornou necessária, que, por sua vez, precisava dos museus de arte para exibir materiais e resultados da história da arte.(6) O método e a instituição emergiram simultaneamente e eram ambos modernos do ponto de vista de sua origem e de sua intenção. Daí não ser possível simplesmente transferi-los para outras culturas sem perda de significado. A história da arte e a etnologia eram dois lados da mesma moeda. Cobriam um mundo claramente dividido como definido pela “Pale of History ” de Hegel o que significava que a história existia apenas no ocidente.(7) Visto por este prisma, os museus não ocidentais pareciam cópias inadequadas de seus modelos ocidentais.
Deixe-me introduzir agora a Arte Contemporânea, um termo que ainda causa muita confusão já que é, tradicionalmente, identificado com a produção mais recente de arte moderna, pelo menos no Ocidente onde esta distinção cronológica ou de vanguarda resistiu até mesmo às noções pós-modernas e permaneceu válida até muito recentemente. Mas para além do ocidente, o termo “Arte Contemporânea” possui um significado muito diferente que lentamente está se infiltrando no mundo da arte ocidental. Lá, é considerado uma libertação do patrimônio modernista e é identificado com as correntes locais de arte de origem recente. Desta forma, oferece uma rebelião contra tanto a história da arte, com o seu significado ocidentalizado, quanto contra tradições étnicas, que parecem prisões para a cultura local em um mundo global. Existem razões por trás desta resistência dupla que merecem nossa atenção.
Por um lado, não havia história da arte na maioria das partes do mundo; e assim, não poderia ser apropriada como algo “ready-made”. Por outro, as artes étnicas e artesanatos, sendo o filho favorito de professores e colecionadores coloniais, não mais permanecem como uma tradição viva mesmo que sobrevivam como um produto para o turismo global. “A morte da arte primitiva autêntica”, para citar o título do livro de Shelly Errington, abre um espaço que é invadido pela Arte Contemporânea com o seu duplo sentido: como pós-histórico, com relação ao ocidente, e pós-étnico, com respeito aos seus próprios ambientes. (8) Não afirmo que isto seja uma descrição do que é, mas uma descrição de como artistas se sentem hoje em dia. Parece que a história da arte, para os artistas ocidentais, tem sido percebido como um fardo semelhante ao que a tradição étnica foi para os artistas não ocidentais. Tampouco estou dizendo que a história apenas existe no ocidente e a tradição apenas em outras partes do mundo. Todavia os dois rótulos desempenharam um papel considerável na construção de uma consciência específica. Nos dois casos, surgiu uma nova situação. Por isto faz sentido que a Arte Contemporânea, em muitos casos seja compreendida como um sinônimo de arte global. Globalismo, de fato , é quase uma antítese ao universalismo pelo fato de descentralizar uma visão de mundo unificada e unidirecional e permitir “múltiplas modernidades,” para citar o tema da edição de Daedalus dedicada ao tópico em 2000. Isto também significa que nas artes, a noção de “moderno” se torna uma definição histórica e que perde correspondentemente a autoridade de um modelo universal. Pode inclusive parecer um passado ligado ao ocidente, como outras culturas vêem seus próprios passados locais.
Agora alcançamos um estágio em nossa análise no qual os conceitos do moderno (ou modernismo), contemporâneo, e global se tornam relevantes para os museus, especialmente os que acabaram de ser fundados em partes do mundo que não pertencem ao ocidente que tem que representar tais questões através de sua coleção e para um público local. Estão em uma situação diferente do que as feiras de arte ou bienais, que são organizadas por curadores individuais, se endereçam a colecionadores individuais, e subjazem às leis do mercado, e são eventos efêmeros que podem contradizer qualquer exposição anterior sem ter que explicar a mudança de direção. Os museus, por outro lado, precisam justificar suas coleções e representar idéias que são mais abrangentes do que o mero gosto pessoal; uma vez que, são instituições oficiais, também estão sujeitas às pressões públicas, e precisam depender do apoio de autoridades patrocinadoras. Daí, precisarem oferecer um programa que, neste caso, esclarece a constelação e o significado local do moderno, contemporâneo e global.

4. O mito modernista e o “MoMA”

Ao voltar-nos para a história do modernismo, não podemos deixar de perceber o papel poderoso desempenhado pelos museus em sua expansão. Por isto gostaria de interromper a minha análise do global com uma crônica de eventos que comprova o papel da instituição na história do modernismo. O Museu de Arte Moderna (MoMA) é uma clara escolha desde que criou o cânon da arte modernista há uns setenta anos. Recentemente, descobriu seu próprio passado ao reabrir suas galerias em 2004. O Modernismo já tinha se tornado um mito.(9) “The Modern,” como é chamado em Nova Iorque, “no fez modernos,” para citar um comentário de Arthur C. Danto.(10) Porém temos que fazer uma distinção entre o modernismo de antes da guerra e do pós-guerra: o anterior ficava na Europa ao fazer sua parição no museu americano. O posterior surgiu apenas no EUA. Foi apenas nos anos do pós-guerra que pudemos falar de um “modernismo ocidental” como sendo um espaço comum cujo universalismo, no entanto, também serviu como um disfarce para a nova hegemonia americana. O MoMA tinha pretensões tanto universais como de um Museu americano.(11)
Quando o MoMA re-abriu suas galerias em 2004, o cânon duplo que havia criado surgiu na superfície de suas principais galerias. Um andar foi reservado para o modernismo europeu, enquanto o outro andar, com poucas exceções, apresentava o modernismo americano. Durante o período de reformas, grande parte da coleção foi enviada para Berlim, onde se tornou uma das maiores exposições que já aconteceram na Alemanha. Esta visita apenas confirmou o mito do museu e a sacralização do modernismo como um cânon clássico. Em Nova Iorque, o museu sucumbiu à tentação de contar a história da casa e de expor o seu mito. Os funcionários estavam muito cientes de que estavam, de certa forma, musealizando o seu museu. Então, anunciaram a conferência com o título “Quando foi a arte moderna? Uma questão contemporânea.” Fui convidado para esta conferência cuja retórica de certa forma discordava da realidade do novo programa da casa. A Arte Contemporânea sempre desempenhou um papel crítico na política de aquisição da casa, no entanto, rapidamente, a defasagem que emergia entre o moderno e o contemporâneo já não tinha mais como ser resolvida.
Agora, seguirei outra linha na minha crônica que nos permite permanecer na mesma instituição. Foi em 1955, no auge do Modernismo, que Edward Steichen “criou” uma “exposição fotográfica para o MoMA”, como o título diz. Foi a The Family of Man, que podia então viajar pelo mundo(12). Pela primeira vez, “a arte da fotografia,” para citar o editorial, se tornou tema de uma exposição em um museu e, como tal, invadiu os âmbitos modernistas da pintura e da escultura. A exposição também quebrou outra regra ao aceitar fotógrafos amadores junto com profissionais. O objetivo era oferecer uma visão global do que Steichen chamou de “a unicidade essencial da humanidade”. De fato, esta exposição representou todas culturas e todos tipos de pessoas mas, visto em retrospectiva, prova que, na época, a câmera estava primordialmente em mãos ocidentais. Uma visão ocidental permaneceu dominante na documentação do mundo. E o idealismo pseudo-inocente era tão óbvio até mesmo nas fotos dos EUA, que Robert Frank, no mesmo ano, atacou o projeto com sua campanha de imagens sujas dos “Americanos”, cuja publicação foi originalmente proibida nos EUA.(13)
Hoje, a fotografia está presente nas coleções dos museus. Mas desde o final dos anos 60, o vídeo entrou na cena artística e, como um meio baseado no tempo, desafiou o perfil do museu muito mais do que a fotografia. Equipamentos de vídeo de baixo custo, já tinham se tornado acessíveis, para uso pessoal. Sua distribuição global também foi incentivada pela sua relativamente breve história na arte ocidental, que o tornou atraente como um meio sem o fardo da história da arte. O editorial ‘arte do vídeo’, a renomada antologia editada por Ira Schneider e Beryl Korot em 1976, insiste na capacidade do vídeo de recuperar imagens que há muito tinham sido banidas da produção artística.(14)
Tais imagens de vídeo que mostram os artistas ou seus ambientes locais pareciam abrir um mundo global com uma gama completa de culturas visuais muito diferentes quando comparadas com a tecnologia uniforme. Um ano após a publicação da antologia, em Paris, o Centro Pompidou foi inaugurado: um novo tipo de museu que também reservava um espaço para os “novos meios,” oferecendo uma nova dimensão desesperadamente aguardada da antiga arte moderna. Mas foi só em 1997 que o ZKM, em Karlsruhe, fez do vídeo e dos meios a ele relacionados um elemento proeminente dentro de uma coleção de museu. No contexto atual, fica claro o quanto a evolução da arte global se beneficiou com o vídeo e as novas tecnologias que são globais por natureza e não dependem da genealogia da história da arte ocidental.
5. O declínio do modernismo
Foi novamente no MoMA que William Rubin celebrou o mito modernista pela última vez com duas famosas exposições complementares, que mostraram saudade de uma história perdida. Estou falando da grande exposição de Picasso de 1980, seis anos após a morte do artista, e a exposição de Primitivismo no século XX, que criou uma resistência muito inconsciente, em 1984. A exposição de Primitivismo poderia facilmente ter sido chamada de “Picasso e a Arte Primitiva.”(15) seu objetivo era reconciliar duas tradições da corrente principal da arte moderna e étnica, mas, de fato, mais uma vez confirmou a antiga perspectiva dualista da “arte tribal,” como a tão falada arte primitiva cujas máscaras e fetiches ainda funcionavam como “inspiração” para a arte de vanguarda da mesma forma que cem anos antes, nos primeiros anos de Picasso. Poder-se-ia falar igualmente de apropriação da arte étnica na história da arte moderna, no sentido da relação dos artefatos étnicos e dos artistas modernos, um processo que contribuiu para a transformação da prática religiosa (coletiva) em criação artística (individual).
É praticamente inconcebível que apenas cinco anos separem a exposição de Rubin do projeto que Jean-Hubert Martin realizou em 1989, no Centro Pompidou, com sua exposição Les Magiciens de la Terre.(16) Esta exposição corta os laços com o projeto anterior por apresentar uma produção não-ocidental como sendo contemporânea em vez de arte étnica primitiva e o fez pela primeira vez em uma escala global. Martin não apenas escolheu quinze artistas vivos do assim chamado “terceiro mundo,” mas também os exibiu ao lado de um número equivalente de artistas ocidentais. Com esta justa-posição, ele pretendia interligá-los em um diálogo imaginário ao invés de identificar qualquer um deles como uma “influência” sobre o outro. Martin não utilizou a palavra “arte”, e sim, o termo “mágica” evitando confusão e crítica sobre a mistura de conceitos. Ele, no entanto, desapontou a maior parte dos críticos do ocidente por minar a autonomia da arte moderna, e os do terceiro mundo por não haver promovido seus artistas às primeiras posições do modernismo. Ele explicou sua exposição como, “une enquête sur la création dans le monde d’aujourdhui.”(17) em retrospectiva, temos que dar-lhe crédito por haver criado o primeiro evento em meio à nova presença emergente da arte global contemporânea.
Rasheed Araeen, que participou do evento, objetou depois que a exposição não representava “a heterogeneidade cultural do modernismo do mundo inteiro” e que tenha estabilizado a divisão na qual o self (eu nuclear) representava uma visão moderna e universal” e “os outros” ainda estavam presos “à sua origem étnica.” Dedicou toda sexta edição do Third Text à crítica da exposição. Dois anos antes, em 1987, Araeen tinha fundado este periódico em Londres “com o objetivo de oferecer um foro crítico para as perspectivas terceiro mundistas com respeito às artes plásticas,” como escreve no seu primeiro editorial.(18) A revista deveria representar “uma virada histórica para longe do centro da cultura dominante em direção à sua periferia” e para ver o centro com olhos críticos. Na primeira década de sua existência, Third Text “se dedicava principalmente à revelação das barreiras institucionais do mundo da world art e dos artistas que excluíam, na segunda década houve uma investigação sobre (o novo fenômeno) da assimilação do exótico do Outro do novo mundo da arte,” como nos recorda Sean Cubitt. Um novo tipo de “racismo institutional-artístico” forçou os novatos a “verem seus trabalhos serem assimilados pelo sistema…. Para alguns artistas, a batalha tinha provocado a retirada das arenas internacionais e o retorno ao local…. Outros abandonaram o conceito da arte como um todo” para buscar “modos alternativos de práticas culturais” para poder escapar às forças assimiladoras do mundo artístico.
Por outro lado, o espaço global absorve o privilégio de representar a história incluindo a variante da história da arte no mundo ocidental. Também ameaça minar o sistema do mundo da arte. A nova presença daqueles que antes eram marginalizados ainda não era previsível quando Araeen lançou seu projeto, em 1987. Neste ínterim, a geografia da arte também vinha se transformado rapidamente como indicado pela nova terminologia. O termo do assim chamado terceiro mundo não mais caracterizava a nova geografia da arte. Agora parecia apropriado falar de um “Sul global,” como dizia Beral Madra, fundador da Bienal de Istambul. O “Sul global” emerge como uma nova periferia em relação aos outros centros emergentes com um novo poder econômico, (como a China), que rivaliza com o ocidente em termos de dimensões globais. Neste sentido o mercado de arte global se tornou um espelho distorcido. Sucesso no mercado não necessariamente significa aceitação local nas sociedades cujos problemas são abordados por artistas locais e vice-versa. O mercado da arte e a aceitação pública estão estranhamente divididos. O mercado freqüentemente priva os artistas de sua voz crítica e seu significado político; e seu potencial crítico precisa de clientes fora do “sistema” cujo julgamento não seja neutralizado pela crítica de arte global assimilada.
A aceitação no mundo da arte ainda foi a questão abordada pela exposição de Graz de Peter Weibel, em 1996, chamada Inklusion: Exklusion, que foi um importante passo para a discussão (e promoção?) de uma grande mudança.(19) Mas “inclusão” (de quem e por que razões?) aconteceu apenas na nova cultura global de exposições emergentes enquanto a aceitação nas coleções de museus seria outra questão. A exposição de Graz conseguiu desenhar “um novo mapa da arte na era pós-colonial,” como diz o subtítulo. No entanto, “a migração global,” a segunda parte do subtítulo, permanece uma experiência pessoal. A migração é refletida na imaginação dos artistas e molda a memória individual. Museus, por outro lado, não migram (mesmo que suas coleções viajem), mas precisam educar um novo público ou são eles mesmos moldados pelo público local. Mas, então, como é que os museus se prestam à globalização no sentido estrito da palavra, se é que tal sentido existe?

6. O futuro dos museus de arte
Pode parecer que a “arte” nos termos da modernidade ocidental, em qualquer aplicação, tenha vencido a batalha e até mesmo tenha se tornado uma experiência global, derrotando a produção étnica e nivelando quaisquer diferenças culturais. Neste caso, museus de arte poderiam esperar um futuro global em que se pareceriam em todos os lugares. Mas esta conclusão seria prematura e permaneceria baseada em observações superficiais que escondem desenvolvimentos novos e inesperados. Certamente, assistimos a esta explosão de museus de arte em muitas partes do mundo. Representam a nova geografia de instituições que por vezes tem menos de dez anos de idade. Normalmente, refletem prosperidade econômica e servem à representação (e valor acionário global) do capital local. Daí serem freqüentemente patrocinados por grandes companhias com investimentos globais, em que o aspecto museológico possui apenas um papel secundário dentro de uma fundação dada, uma situação já ridicularizada pela descrição “restaurante com museu.” Em suas declarações de missão, ainda alegam servir como laboratórios culturais ou centros urbanos de cultura, que a cultura teria uma posição privilegiada em uma economia avançada o que, neste caso, também significa conformismo global com o mercado de arte. Mas os museus são por definição locais, e vivem em última instância da expectativa de públicos locais. Isto também envolve a noção de que, atualmente, não se separa uma sociedade da outra, e sim a elite econômica da maioria de qualquer cultura.
Pode ser útil situar as fundações de museus em oposição às novas feiras e bienais de arte, que, após haver inicialmente aparecido em lugares tais como Istambul, neste meio tempo já alcançaram Xangai. A diferença é que tais eventos são efêmeros e refletem uma estratégia de marketing através da qual artistas locais recebem apenas o privilégio de serem mostrados dentro do contexto da arte internacionalmente aceita. Por isto, os curadores responsáveis, na sua maioria estrangeiros, garantem ou pretendem garantir um alto nível de aceitação e atenção para artistas locais. A Bienal de Johannesburgo foi inaugurada em 1995, um ano após as primeiras eleições democráticas. Certamente serviu a altas metas políticas. Mas tais eventos, na maioria das vezes, incentivam a participação no que é identificado como “mundo da arte contemporânea.” Este, no entanto, sempre precisa de novas sensações e logo perde interesse no mundo da arte local, como foi infelizmente o caso de Sarajevo.
Museus, por definição, são instituições locais que não tem como manter o ritmo destas exposições que tanto estão na moda. Mesmo que sirvam de anfitriões para elas, o problema chave é a coleção, o que nos leva a uma escolha difícil, mesmo que excluamos a intervenção de colecionadores privados: ou a coleção do museu é local e logo não tem como atrair o interesse dos visitantes e patrocinadores, ou representa um nível internacional que é economicamente inacessível e afasta os artistas locais. Finalmente, tais instituições públicas dependem em última instância de um público local que não compartilha do gosto pelo mundo da arte. Suas estratégias de representação o ligam à cultura local.
A questão é se, e até que ponto, a Arte Contemporânea pode representar a cultura local, mesmo com objetivos culturais, ou se a arte está simplesmente explicando sua própria existência. Também podemos inverter esta questão. O que é que um público local, em muitas partes do mundo sem familiaridade com a arte, espera ver em um museu de arte? Para citar Colin Richards, podemos nos perguntar: “o que permanece diferenciado e sedutor na arte?” Ele continua sustentando que é a “relação da arte com uma dinâmica social e política mais ampla” e nos recorda que na África do Sul, assim que o movimento da arte conseguiu um maior impulso, começou “um debate contínuo sobre a autonomia da arte em relação ao mundo político e social nos quais estava imersa, e mais ainda, como compreender melhor a relação entre a arte e estes mundos.”(20) Por outro lado, a arte pode ser considerada “um dos poucos espaços que resta para imaginar uma vida menos gerida e administrada.” Por outro as reclamações da arte exigindo maior proteção e autonomia, facilmente, se tornam um obstáculo à sua presença pública, e por isto os museus enfrentam um desafio que afeta diretamente o seu papel tradicional.
Enquanto o resultado da globalização ainda for um espelho em grande parte embaçado, o futuro dos museus de arte permanecerá imprevisível, tanto em relação à sua sobrevivência e sua possível mudança de perfil. Mas podemos imaginar que o museu está predestinado à representação dos “mundos contemporâneos” para usar a formulação de Marc Augé. Augé falou de “uma antropologia para mundos contemporâneos” para poder implementar uma mudança estrutural para a antropologia tradicional. “Os habitantes do mundo se tornaram, finalmente, contemporâneos e, no entanto, a diversidade do mundo é recomposta a cada momento: este é o paradoxo dos nossos dias. Temos que falar, então, de mundos no plural.” A situação da antropologia “remete à coexistência da entidade singular implícita na palavra contemporâneo e a multiplicidade de mundos que qualifica.” Ele vai tão longe a ponto de dizer que “cada sociedade é constituída de vários mundos.”(21)
Aplicado aos casos de museus, fica claro que “o mundo da arte” poderá se tornar mais heterogêneo e cada vez menos definido. Isto não apenas significa que possui uma multiplicidade. O que sim temos que aceitar é que muda de um lugar para outro. Isto é válido inclusive para coleções cujos trabalhos de arte transformam o significado onde quer que sejam expostos: não simplesmente possuem um significado possível ou ainda, um significado universal, mas estão sujeitos à compreensão de um público local. Logo, o mundo da arte poder-se-á tornar eventualmente permeável, uma entidade porosa que se desintegra dentro de um todo maior ou sucumbe a uma diversidade de sistemas. Sua oposição tradicional entre a “arte” e a “produção étnica” é exposta a novas práticas nas quais tais dualismos perdem o significado. Até mesmo no ocidente, a era do museu não é muita mais antiga do que o que podemos chamar de arte moderna e, por isto, não pode ser independente de condições claramente circunscritas a condições históricas e sociais.

7. Arte mundial e arte global
A nova geografia das instituições de arte afeta não apenas o domínio da Arte Contemporânea mas também exerce pressão sobre os maiores museus do ocidente quando com a controvérsia sobre arte mundial que carrega consigo a possibilidade de repatriação de reclamações. Em dezembro de 2002, dezoito museus metropolitanos do ocidente assinaram uma “Declaração sobre a importância e valor universal dos museus”, reutilizando assim a concepção ocidental moderna de universalismo, contudo aplicando-a ao cuidado responsável do patrimônio artístico mundial. A declaração alega servir o planeta e não apenas ao ocidente. Neil MacGregor, em nome do British Museum, falou sobre “um museu do mundo para o mundo.” Perguntou retoricamente: “Onde mais, a não ser nos museus, o mundo poderá enxergar tão claramente que é apenas um?” Mark O’Neill, diretor dos museus de Glasgow, retrucou dizendo que o Museu com uma coleção de arte mundial, para poder agir em nome do mundo, “precisaria estar aberto para as histórias conflitantes de alguns objetos” e “revelar a história imperial além da história do iluminismo das coleções.”(22)
Enquanto esta atividade gira em torno do patrimônio artístico mundial, outras mega-instituições, em sua grande maioria museus de arte moderna, tais como o Guggenheim Museum, em New York ou o Centro Pompidou, em Paris, reagem de forma diferente ao desafio do mundo globalizado ao expandir suas esferas de influência e ao re-estabelecer os ramos neocoloniais da arte modernista em outras partes do mundo. A retórica global mal consegue esconder os aspectos materiais e econômicos por trás destes planos. Recentemente, Hong Kong foi escolhida como local para a criação de um centro de arte gigantesco que irá superar qualquer coisa no ocidente, todavia, dando continuidade às estratégias ocidentais. Parece que um choque entre instituições e conceitos representa uma nova economia global do museu. Ali perto, o Museu Nacional da Arte Ocidental de Tókio foi, originalmente, fundado para identificar o ocidente como uma cultura local e para a distinção do patrimônio ocidental da influência ocidental do patrimônio nativo. Na China continental, o recentemente inaugurado Museu da Arte Mundial de Pequim rivaliza com os planos de Hong Kong ao adotar reivindicações ocidentais para padrões chineses. O museu espelha significativamente e adapta o espírito de uma disciplina de crítica de arte que está surgindo recentemente na China chamada “história da arte mundial” que alega possuir a competência necessária para discutir “a arte mundial” do ponto de vista chinês.
O conceito da arte mundial (world art) merece um olhar mais atento, já que difere da arte global tanto em termos de significado como intenção. A diferença pode parecer um jogo de palavras mas nos permite fazer uma distinção entre a produção de arte global, como uma experiência recente, de uma antiga idéia em que arte mundial é o clímax do “patrimônio da arte mundial.” A Arte Mundial já era um conceito moldado do “Museu sem muros” de André Malreaux que representava uma variante do patrimônio. Os sonhos de Malraux começaram a virar realidade nos anos obscuros da Segunda Guerra Mundial em uma Paris acuada. O famoso livro Le musée imaginaire, publicado pela primeira vez em 1947, introduz a arte mundial como um somatório do que foi criado plasticamente em diferentes culturas e que identifica a “arte” mais além do discurso ocidental.(23) Sua abordagem é totalmente visual e estética sem permitir quaisquer fronteiras de diferenças culturais ou históricas. Ele pretendia superar o dualismo tradicional entre a arte (ocidental) e artefatos (étnicos), que considerou uma atitude colonial fora de época. Ironicamente, seu projeto também expressa um complexo de culpa antigo. O jovem Malraux foi condenado pela administração francesa da Indochina por um crime colonial, em 1924. Foi acusado de roubar esculturas de um templo antigo que pretendia vender no mercado internacional de arte.(24)
Malraux, paradoxalmente, ainda colocava o museu num pedestal, mesmo que sonhasse com um museu ideal e universal. Enquanto isto, o museu, como idéia (seja com ou sem muros), se tornou um problema para a assim chamada arte global, que ainda é um fenômeno recente. Artistas não ocidentais mantêm um preconceito duplo contra o patrimônio artístico, tanto como contra suas próprias tradições étnicas, e contra a história da arte no sentido ocidental do modernismo. Na sua atitude pós-étnica e pós-histórica, questionam duas funções principais do museu ocidental. No ocidente, neste ínterim, os museus aparecem divididos em dois papéis contraditórios que não podem ser reconciliados facilmente. Tradicionalmente, os museus serviram como uma coleção de arte passada que passou por uma canonização dentro das portas do museu: para mencionar apenas a antiga lei francesa que proibia a entrada de artistas no Louvre até dez anos após sua morte. No modernismo, no entanto, os museus se voltaram inesperadamente para um estágio efêmero de “living art”, que freqüentemente é criada para, e até mesmo encomendada por, museus. Apenas estou lhes recordando dos trabalhos chamados de “site-specific” e das instalações. É claro que estas duas visões das galerias contradizem a identidade da instituição, muito embora ambas sejam aceitas como de uso legítimo pelo museu.
Isto nos leva à questão da institucionalização da assim chamada arte global. É, neste sentido, necessário fazer uma distinção. Na minha opinião, a questão se refere ao papel do museu local de arte local, especialmente, fora do Ocidente, e sua sobrevivência. Em 2005, a curadora sênior do Musue Taipeh de Arte Contemporânea, Kao Chien-hui, lidou com estas questões ao lançar uma exposição cujo tema era a instituição como tal. Ela chamou a sua exposição de Trading Place (espaço de comércio) - “exposição comentada”, montada como uma exposição de arte “conceitual embora plástica” mas no sentido do discurso sobre questões que tratam do mundo da arte hoje.”(25) O museu não falou com sua própria voz, e sim convidou os artistas a lidar com tópicos tais como “roubar, trocar, comerciar, re-presentar e apropriar-se erroneamente.” O artista Zhang Hongtu montou uma “réplica de arena de exposição” onde o trabalho genuíno foi questionado como noção universal. Uma peça com o título MoMAo Museum (Museu Apenas da Minha Arte) ridicularizou o Museu por ser um palco para a auto-promoção ao invés de uma representação do mundo da arte como tal. A exposição certamente revelou um desejo de envolver o público local nas políticas de coleção e exposição. Assim, o público foi encorajado a ver o museu e também o mundo da arte contemporânea através da mediação das visões dos artistas sobre estes assuntos para assim desenvolver sua própria atitude.

8. Epílogo

Durante três anos, o Collège International de Philosophie em Paris organizou um seminário que oferecia intervenções mensais sobre modelos de exposição de Arte Contemporânea.(26) O foco não estava na coleção do museu, mas no espaço da exposição com seus inúmeros jogos e formas de entretenimento. Os oradores franceses limitaram ainda mais a discussão ao reduzirem a Arte Contemporânea a um tópico ocidental, como se a globalização da produção artística, a manifestação mais conspícua da Arte Contemporânea, ainda não tivesse acontecido. A artista Alejandra Riera apresentou um paper intitulado “Um problema mal resolvido.” Mas o que é o problema? Considero a institucionalização da Arte Contemporânea, em uma escala global, “o problema mal resolvido.” Talvez os museus de arte tenham que encontrar várias soluções, e não apenas uma, já que o seu futuro depende de um significado local até mesmo na era global.
O problema permanece com as expectativas de seu público. Mas o que é o seu público? Por um lado, os museus precisam atrair o turismo global, o que significa reclamar sua fatia na nova geografia das culturas mundiais. Neste sentido, o conformismo da arte global não seria uma solução. Por outro, precisam de aceitação e apoio do público local. Cultura, para começar, é específica do ponto de vista local, mesmo que minorias exijam uma maior visibilidade nas instituições de arte. Neste caso, se trata de um problema econômico, no outro, demonstra ser um problema político relacionado à liberdade de expressão.
No final, não é suficiente simplesmente considerar museus de arte não mais do que projetos econômicos ligando-os assim a visões de uma economia mundial expandida. Ao invés disto, seu problema está enraizado no reconhecimento da “arte,” uma vez que este conceito — em um sentido duplo — alimenta e mina a produção de Arte Contemporânea. Arte era uma idéia ocidental que surgiu na modernidade contra a resistência nacional e promoveu a reclamação contestada de um modernismo internacional. Uma vez que o universalismo, neste sentido, não sobreviveu ao senso comum, poderemos nos perguntar se no final das contas a arte se tornará uma idéia local. Tal questão revela a complexidade inerente ao assunto dos museus. “Arte local” não pode significar uma série de definições arbitrárias que mudam de um lugar para o outro. O Local precisa e irá adquirir um novo sentido diante do mundo global.
Os museus desempenham um papel crítico, especialmente no âmbito da Arte Contemporânea, um papel diferente da representação do patrimônio mundial. Atualmente, não é possível prever qual papel lhes será conferido. Na melhor das hipóteses, levaria à orquestração de papéis que são diferentes mas ainda assim compatíveis. Tais papéis estão intimamente ligados à reclamação contestada por criatividade pessoal, incluindo a liberdade de expressão, que foi garantida como um ideal já aceito de competência estética em termos de uma qualidade diferenciada de “arte.” Simultaneamente, tal conceito de arte foi a condição para criar um território externo que chamamos de museu, uma zona protegida das garras do poder político. Outra hipótese seria de que esta zona permaneceria uma esperança nas partes do mundo em que a liberdade política parece estar sob perigo. Para concluir, os museus de arte precisam integrar o duplo papel de permanecerem (ou se tornarem) uma instituição independente e, simultaneamente, servirem como um novo fórum político.

(1) Hans Belting, Likeness and presence (Chicago 1994).
(2) Derrick de Kerckhove, La civilisation vidéo-chrétienne (Paris 1990) com referência a McLuhan.
(3) Hans Belting, “The exhibition of culture”? Cf.p. neste volume.
(4) Bernard Dupaigne, Le scandale des arts premiers. La veritable histoire (Paris 2006).
(5) Brian O’Doherty, Inside the White Cube (New York 1984).
(6) Hans Belting, Art History after Modernism (Chicago Univ. Press 2003).
(7) Arthur C. Danto, After the end of art.Contemporary Art and the Pale of History (Princeton 1997).
(8) Shelly Errington, The death of authentic primitive art and other tales of progress (Univ.of Calif.Press 1998).Cf. Sally Price, Primitive art in Civilized Places _(Chicago 989) and R. Corbey, _Tribal Art Traffic (Amsterdam 2000).
(9) John Elderfiel, ed., Imagining the Future of the Museum of Modern Art (New York 1998).
(10) Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box (New York 1992).
(11) Hans Belting, The Invisible Masterpiece (Chicago 2001)p.362ff.
(12) Edw.Steichen, The Family of Man (Catal. MoMa 1955).
(13) Robert Frank, The Americans (Paris 1958, N.York, Grove Press 1959, re-editado Zurich 1997).
(14) Video Art, ed. Ira Schneider e Beryl Korot (London 1976).
(15) William Rubin, “Picasso,” in: Rubin, ed., “Primitivism” in 20th cent. Art. Affinity of the Tribal and the Modern (New York 1984), vol..I., p.241–340.
(16) Thomas McEvilley, “Ouverture du piège, e Homi Baba, Hybridité, heterogeneité et culture contemporaine,” in: ed. Hubert Martin, Les magiciens de la terre (Centre G.Pompidou, Paris 1989), pp.20 e 24.
(17) Hubert, ibid., p.8f.
(18) Rasheed Araeen, ed., The Third Text Reader on Art, Culture and Theory (London 2002), p.3ff. (Prólogo por Sean Cubitt).
(19) Peter Weibel, ed., Inklusion:Exklusion (Graz: Steirischer Herbst 1996).
(20) Colin Richards, “The wounds of discovery,” in: A. Pinto Ribeiro, ed., The state of the world (Lisbon: Gulbenkian Foundation, 2006), p.18f.
(21) Marc Augé, An Anthropology for Contemporaneous Worlds (Stanford 1999), p.89ff. Cf. Francis Affergan, La pluralité des mondes. Vers une autre anthropologie (Paris 1997).
(22) Moira Simpson, “A world of Museums: New Concepts, New Models,” in: Pinto Ribeiro (ver nota 20), p.101f.
(23) My description in Belting, Art History after Modernism (Chicago 2003) p.153ff. (24) André Malraux, Anti-Memoirs (New York 1968). (25) www.mocataiei.org.tw/english (2006). (26) L’Art Contemporain et son exposition(1) (Paris: L’Harmattan, 2002) Com o texto de A.Riera na p.139ff.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

DELEUZE TIROU A POEIRA DAS IDÉIAS DE BERGSON

PETER PÁL PELBART


No início dos anos 70, em resposta a um amigo que o acusava de estar filosoficamente acuado, o pensador Gilles Deleuze escreveu: "Sou de uma geração, uma das últimas gerações que foram mais ou menos assassinadas com a história da filosofia. A história da filosofia exerce em filosofia uma função repressora evidente... Você não vai se atrever a falar em seu nome enquanto não tiver lido isto e aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo. Na minha geração muitos não escaparam disso, outros sim, inventando seus próprios métodos e novas regras, um novo tom. Quanto a mim, "fiz" por muito tempo história da filosofia... Mas eu me compensava de várias maneiras. Primeiro, gostando dos autores que se opunham à tradição racionalista dessa história (e entre Lucrécio, Hume, Espinosa, Nietzsche, há para mim um vínculo secreto constituído pela crítica do negativo, pela cultura da alegria, o ódio à interioridade, a exterioridade das forças e das relações, a denúncia do poder... etc.). O que eu mais detestava era o hegelianismo e a dialética..."


Em seguida, Deleuze explica como conseguiu safar-se desse impasse: a partir dos autores comentados, produzia leituras insólitas, filhos ligeiramente "monstruosos": "O autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer. Meu livro sobre Bergson me parece exemplar nesse gênero." (`Carta a um crítico severo', em "Conversações").


O livro sobre Bergson a que o autor se refere em sua carta sai agora em português pela Editora 34 com o título de "Bergsonismo", na fina e esmerada tradução de Luiz Orlandi. Ao debruçar-se sobre um filósofo já "clássico" e hoje um pouco esquecido como Bergson, Deleuze faz neste livro de 1966 uma monografia aparentemente despretensiosa. Aborda os grandes temas de Bergson: a intuição, a memória, a duração, o impulso vital. Mas o leitor se dá conta, desde logo, que está diante de um bergsonismo pouco comum, em todo caso nada espiritualista. A duração (nome dado por Bergson ao tempo) deixa de ser apenas uma experiência psicológica, para tornar-se um caso da duração ontológica, essência variável das coisas, condição da experiência. A memória, por sua vez, não é pensada como sendo interior a nós, nós é que somos interiores a uma gigantesca Memória, imemorial e ontológica, virtual e inconsciente. O impulso vital passa a designar o movimento pelo qual o ser se atualiza, não a partir de um "possível" ideal que o presente viria desovar, mas a partir de uma virtualidade (real) a ser desdobrada, diferenciada. A vida mesma é concebida como uma tal produção de diferenças - a vida é invenção.


Como se vê, esse conjunto ainda é Bergson, mas já tudo gira em torno de um eixo que nosso século não cansará de ecoar: a idéia de diferença. No artigo seminal de Deleuze publicado dez anos antes deste seu livro e com razão incluído no presente volume, intitulado A Concepção da Diferença em Bergson, este conceito conduz sistematicamente a leitura do filósofo. O método da intuição é definido como o "gozo da diferença", a duração ou a vida são concebidas como aquilo que difere de si mesmo, o próprio homem é aquele em quem a diferença eleva-se à consciência de si. Na contracorrente de um hegelianismo ainda dominante na época, para Deleuze é a diferença que importa, não o negativo. Ao lançar as bases de sua própria ontologia materialista, Deleuze insiste que em Bergson o movimento do ser se dá por diferenciação interna, criação positiva, e não por contradição, num jogo dialético da determinação negativa. O filósofo chega a afirmar que se a noção de diferença pode trazer uma certa luz ao bergsonismo, "o bergsonismo deve trazer a maior contribuição para uma filosofia da diferença". É o que se percebe neste livro ligeiramente "monstruoso": a fineza penetrante de Deleuze retoma com fidelidade o conjunto da filosofia bergsoniana, mas ao mesmo tempo nela produz tantas inflexões sutis (algumas nietzscheanas) que Bergson aparece como um precursor das filosofias da diferença, das quais o próprio Deleuze foi um dos expoentes.


O belo livro de Bento Prado Jr. a ser lançado em Paris, intitulado Presença e Campo Transcendental, escrito mais ou menos na mesma época que o de Deleuze e com o qual ele tem inúmeras afinidades, ajuda a lançar luz sobre esta relação entre Bergson e sua posteridade. Lembremos da observação arguta de François Laruelle: nosso século vive sob o signo da Diferença assim como o 19 se constelou em torno da Dialética. Se antes a Diferença era apenas um procedimento periférico, uma escrava da Contradição, como na Dialética, e depois da Estrutura, como no estruturalismo e derivados, tornou-se a partir de um certo momento ela mesma uma problemática, um princípio real e mesmo uma emoção "a priori, uma verdadeira sensibilidade filosófica ou transcendental sem a qual a filosofia estaria morta de hegelianismo ou de estruturalismo: de tédio..." Talvez os textos de Deleuze sobre Bergson, nesta porosidade instigante entre filosofia e história da filosofia, sejam a marca inaugural desta reviravolta "atmosférica" na filosofia francesa.


No entanto, este livro não interessa apenas aos filósofos, longe disso. Para quem hoje necessita aprofundar noções como a de virtual, ou fica intrigado com a reintrodução da seta do tempo nas ciências (por exemplo, nas pesquisas de Prigogine e Stengers), ou quer mergulhar nas aventuras da memória e seus paradoxos, o livro de Deleuze é um prato cheio. Escrito em linguagem clara e acessível, sem perder em nada a complexidade de seu objeto, vemos emergir um Bergson desempoeirado, com o frescor das filosofias feitas para pensar o presente.



Peter Pal Pelbart é professor de filosofia na PUC-SP

resenha do livro de Gilles Deleuze, Bergsonismo, Editora 34, 2000


publicada no Estado de S. Paulo — Domingo, 15 de outubro de 2000

http://br.geocities.com/polis_contemp/peter.html


IDENTIDADE À DERIVA

A história dos moçambiques é a menos conhecida dentre os negros que vieram escravizados ao Brasil, em parte por serem mais suscetíveis a doenças locais e também pelo predomínio de indivíduos masculinos

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Já se disse que o comércio negreiro nos aproximou tanto da África que, de oceano, o Atlântico virou rio. Se o Índico, ao contrário, ainda hoje nos remete sobretudo a mistérios, é porque em grande medida o tráfico entre a costa oriental africana e as Américas encarnou a mais tênue ponte engendrada pelo tempo do cativeiro.
Macuas, macondes, angonis, chopes e demais moçambiques representavam menos de 5% dos africanos escravizados no Brasil do século 18. Não era para menos. Quem os comercializava eludia a longa rota para a América portuguesa, em cujos navios talvez imperassem os maiores índices de mortalidade da navegação moderna. Menos arriscado era vendê-los aos haréns islâmicos do golfo Pérsico, aos franceses que plantavam cana-de-açúcar em diversas ilhas do Índico ou, mais a leste, aos potentados hindus.
Foi necessário que os portos coloniais se abrissem ao comércio internacional, em 1808, para os golfos da Guiné e Angola se tornarem incapazes de arcar sozinhos com a nova escala da demanda brasileira.
Só então a rota índica se consolidou, embora de maneira nunca extravagante -os moçambiques representaram cerca de 20% do total de africanos aqui desembarcados no século 19.

Horrores na travessia
Para serem competitivos, os traficantes da seção índica lotavam seus negreiros como poucas vezes se vira, e os horrores experimentados durante a travessia oceânica tornaram-se ainda mais correntes. Numa noite de tempestade de 1843, o reverendo inglês Pascoe Grenfell Hill assegura ter visto 400 infelizes serem trancafiados em um porão de 11 m de comprimento por 6,5 m de largura e pouco mais de um metro de altura.
Na manhã seguinte, dali foram retirados 54 corpos, despedaçados na luta pelo precioso ar de umas poucas escotilhas.
Navios superlotados de homens, ressalte-se. Pois, se no Atlântico os escravos do sexo masculino suplantavam as mulheres numa proporção de 2 por 1, nos negreiros do Índico a cifra facilmente dobrava. Tratava-se de uma escolha lógica: no Rio de Janeiro, por exemplo, os homens adultos alcançavam preços 30% superiores aos das escravas.


O reverendo inglês Grenfell Hill viu 400 infelizes serem tranca-fiados em um porão de 11 m de compri-mento por 6,5 m de largura e pouco mais de um metro de altura


Os caminhos pelos quais o tráfico índico se consolidou remetem à drumoniana constatação de que todo ato instaura uma situação. Logo, se a história dos afro-orientais é, hoje, a menos conhecida dentre todos os africanos no Brasil, isto se deve em grande parte às opções implícitas ao seu traslado.
A invisibilidade derivava da morte que os dizimava ainda nos primeiros tempos de Brasil, em proporções bem superiores às detectadas para outros grupos de africanos. Feneciam mais rápido e de modo qualitativamente distinto, conforme sugerem os inventários post-mortem do século 19: os afro-orientais padeciam sobretudo de infecções, e os oriundos dos portos atlânticos em especial de traumas.

Menor resistência
Protagonistas recentes da migração forçada, os moçambiques resistiam menos à esfera microbiana brasileira, tornando-se presas mais fáceis da disenteria e da varíola do que angolas, congos, benguelas, gêges ou nagôs, por exemplo. Por isso dispunham, em escala, de menor tempo do que estes para estreitar laços, cultivar hábitos e socializar símbolos. Para fincar raízes, enfim.
Sua invisibilidade se nutria também do esgarçado excedente masculino vigente entre eles, do qual redundavam exíguas freqüências de arranjos familiares -pouco mais de 10% dos moçambiques viviam com seus cônjuges e/ou filhos, contra um quinto dos congo-angolanos e afro-ocidentais. Se a isso se acrescenta a fragilidade microbiana, veremos o quão difícil era para um afro-oriental se aculturar e gerar descendentes, os pilares de todo processo de ressignificação cultural sólido e duradouro. Não surpreende que tão poucos entre eles conseguissem obter cartas de alforria.

Pulverização cultural
Por fim, embora vários estudos demonstrem que a escolha dos cônjuges escravizados era presidida por um critério altamente seletivo, com a endogamia por origem se impondo, também nesse aspecto os moçambiques divergiam. Os registros de casamentos depositados em arquivos do Rio de Janeiro são enfáticos a esse respeito.
Apenas um entre cada dez moçambiques se unia a um cônjuge originário da África Oriental.
Em contrapartida, de metade a três quartos dos embarcados na região congo-angolana contraíam matrimônio entre si. Presas tenras de um destino injusto, os poucos moçambiques que casavam faziam-no por meio de uma enorme pulverização cultural, igualmente derivada do exorbitante predomínio masculino.
Em um plano mais geral, esses fragmentos da trajetória afro-oriental reiteram a idéia de que a tragédia humana não tem porto de partida nem de chegada. No varejo demográfico, eles sugerem terem sido inúmeros os caminhos pelos quais a chamada crioulização (o outro nome da aculturação) vicejava -ou não- entre os africanos no Brasil.
Tantos e qualitativamente tão díspares entre si a ponto de tornar ocioso postular a existência de uma identidade "africana" entre nós, sobretudo quando o cativeiro já não passa de tecido morto.
Nada que desespere, entretanto. Afinal, parafraseando Jorge Luis Borges, coisa nenhuma no universo sabe que sua forma é única.

Manolo Florentino é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira). Escreve na seção "Autores", do Mais!.

São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006

A MEMÓRIA FORÇADA

O psicanalista inglês Adam Phillips rebate aqueles que vêem a lembrança como o último vestígio do mito da redenção nos planos pessoal e histórico e defende a necessidade do esquecimento nos dias atuais

ADAM PHILLIPS

Há uma passagem estranha, pelo menos aos olhos de um leitor moderno, na dedicatória de Rousseau em seu "Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens" (Martins Fontes), publicado em 1754. Ele está discutindo os romanos -"aquele modelo de povo livre" que "não tinha condição de se governar autonomamente quando primeiro se libertou da opressão dos tarquinos". Os romanos demoraram ainda muito tempo a experimentar a liberdade, porque seriam "almas enervadas, ou melhor, brutalizadas, pela tirania".


Afirmar que aqueles que esquecem o passado provavelmente estão condenados a repeti-lo não equivale a dizer que aqueles que o recordam não o farão


O passado "traumático" dos romanos como vítimas e praticantes da brutalidade e as dificuldades que isso lhes causou com relação à sua liberdade e capacidade de autogoverno fazem com que Rousseau profira um estranho voto. "Por esse motivo", escreve ele, "eu desejaria como meu país uma feliz e pacífica comunidade em que a história tivesse se perdido, por assim dizer, nas trevas do tempo, e que tivesse sofrido apenas os ataques hostis necessários a despertar e fortificar a coragem e patriotismo de seus habitantes; uma comunidade cujos cidadãos, por muito tempo acostumados a uma sábia independência, fossem não só livres, mas dignos da liberdade".
Como sempre, as contradições e confusões do texto de Rousseau são tão reveladoras quanto suas propostas explícitas. O país que ele deseja é uma comunidade pacífica e feliz, que tenha sido vítima apenas do tipo de hostilidade que despertou o que ela tinha de melhor. Se esse é de fato o caso, qual é a necessidade de que a história desse país se tivesse perdido nas trevas do tempo?

Um passado perdido
Tendo em vista a posição dos romanos, que ele toma como exemplo, fica claro que, na opinião dele, uma história adversa faz mal à comunidade -o que, evidentemente, tem sérias implicações, já que tanto Rousseau quanto seus leitores sabiam perfeitamente que raras sociedades desfrutam de passados imaculados (a persistência dos mitos quanto a uma era dourada são o perfeito testemunho desse fato).
O que soa estranho para o leitor moderno é a crença declarada de Rousseau de que um bom futuro, "uma comunidade feliz e pacífica", depende de um passado perdido; um passado, em outras palavras, que foi esquecido porque todos os traços dele desapareceram.
Hoje é muito mais provável que lamentemos, temamos, evitemos e tentemos recuperar nossos passados perdidos. Esquecer, tanto na vida pessoal quanto na vida política, se tornou prática encarada com uma espécie de temor supersticioso. Até mesmo aqueles que acreditam que já não podemos ser salvos presumem que a memória pode nos ajudar, que a lembrança é nosso último vestígio do mito da redenção.
Tentativas de abolir o passado ou de dogmaticamente substituí-lo pelas versões dele, que por algum motivo viemos a preferir, são hoje encaradas com suspeita por muitas pessoas, até mesmo por aquelas que acreditam que escrever história seja sempre um ato de reescrever o passado, que toda a história é história revisionista.
Aqueles que negam o Holocausto são diferentes dos historiadores que procuram determinar exatamente quantas pessoas foram mortas nos campos de concentração, mas ainda assim precisaríamos saber sobre o que, exatamente, aquilo de que desejam nos persuadir -ou se persuadir-, deliberada ou acidentalmente, com suas investigações e negações. Voluntárias ou involuntárias, ou seja, encorajadas ou desencorajadas, as memórias têm sempre um futuro na mente.
Assim, quando dizemos que alguém deveria recordar o Holocausto, é preciso que determinemos com o máximo de clareza que objetivo teria essa lembrança. Sabemos, por exemplo, que afirmar que aqueles que esquecem o passado provavelmente estão condenados a repeti-lo não equivale a dizer que aqueles que o recordam não o farão.
Na medida em que venham a repeti-lo, em qualquer grau -e nem todos os traumas se repetem, a não ser que definamos trauma como aquilo que se repete- , é provável que o repitam de maneira diferente. Tendemos a pensar, tendo esse quadro em mente, que aqueles que se recordam do passado e o repetem o fazem como ato de restauração, renovação, celebração, reconsideração e assim por diante, enquanto aqueles que esqueceram o passado -ou o reprimiram, como dizemos hoje em dia com relação aos traumas- provavelmente o fizeram sem saber que era isso o que estavam fazendo.
Nesse mito redentor da memória, lembrar o fato terrível -o pecado original, o trauma cultural ou pessoal-, mantê-lo em mente, supostamente mitigaria ou até impediria uma repetição. Lembrar o trauma é imaginar novamente uma vida que o incorpora assim como lembrar o crime é lembrar a lei que não deveria ter sido violada.

Obsessão pela memória
Existe uma crença esperançosa sob o mito redentor da memória: a de que aquilo que deve ser lembrado -desde que nos lembremos das coisas certas e da maneira certa- beneficia o nosso bem-estar e até mesmo a nossa virtude. Recordar, se o fizermos da maneira apropriada, nos dará as vidas que desejamos.
A memória pode até nos manter cordatos. Mas, na verdade, estamos conscientes, em área distinta de nossas mentes, de que na verdade não é possível que a memória seja mais virtuosa do que aqueles que a manipulam. Os nazistas estavam conduzindo sua versão do processo de recordação ao reciclar o mito de suas origens arianas; reconstituir, documentar, prestar testemunho, analisar e divulgar atrocidades não parece reduzir seu escopo ou escala.
O nazismo é agora só mais uma iconografia e uma ideologia disponível para uso -tanto em afirmação quanto em oposição- no campo da cultura. A obsessão pela memória nos cega para os abusos que ela pode sofrer e para os usos do esquecimento. Quanto a determinadas coisas -e o Holocausto talvez seja uma delas, se bem que apenas uma entre muitas-, deveríamos estar nos perguntando não qual é a melhor maneira de recordar, mas, sim, qual é a melhor maneira de esquecer.
Nosso medo (moderno) é o de que não obtenhamos sucesso no esquecimento ou de que o esquecimento não seja possível; talvez, evidentemente, exista também o desejo de que as atrocidades não sejam esquecidas; de que, na verdade, não sejamos capazes de nos encarar como criaturas que seriam realmente capazes de esquecer coisas como essas.
Tendemos a esquecer as experiências que são fortes demais para nós, aquelas que, na linguagem redutora da psicologia, nos causam um excesso de prazer ou de sofrimento.
Consideramos aquilo que é passível de esquecimento como trivial ou como insuportável; e nesse quadro temos um lugar para armazenar o insuportável; mas, sob o mesmo critério, acreditamos que aquilo (a lembrança, a experiência, o desejo) continue lá, em algum lugar, sempre capaz de retorno. E termos um lugar para aquilo é trivial, no qual essas coisas são efetivamente eliminadas.
Há a obsessão e há o descarte, e nem sempre está em nosso poder decidir qual é qual. E é esse fator, talvez acima de todos os outros, que faz com que obrigar as pessoas a lembrarem -assim como forçá-las a comer- seja ao mesmo tempo tão implausível e tão problemático moralmente.
O nosso desejo de que o povo alemão recorde o Holocausto e que o recorde como algo terrível equivale a lhes dizer algo como: "Nós sempre estamos propensos a esquecer nossa preocupação para com os outros, e talvez a nossa preocupação para com os outros seja o verdadeiro trauma que faríamos qualquer coisa para esquecer. Vocês jamais devem se esquecer disso outra vez".
Na pior das hipóteses, podemos, da maneira mais gentil que existe, estar obedecendo à lei de talião: torturando os torturadores e nos tornando uma versão da coisa que nos horroriza (talvez não seja incidental que a culpa muitas vezes torne as pessoas agressivas, e que, portanto, fazer com que as pessoas se sintam culpadas freqüentemente provoque nelas exatamente aquilo que se está tentando evitar).
Fazer com que as pessoas recordem tende a presumir que seja possível calcular as respostas que terão às memórias. É uma tentativa de impor uma solução artificial, quando soluções artificiais são parte do problema. A recordação forçada -a absurda idéia de que seria possível aprender de cor a história pessoal e em uma versão correta- na verdade demonstra medo da história: um bem fundamentado temor de que o passado esteja sujeito a múltiplas e variáveis interpretações.
As coisas que recordamos e os caminhos pelos quais a memória nos conduz são imprevisíveis. As chamadas democracias liberais não conseguem escapar ao fato de que alguns de seus membros provavelmente desejarão recordar o Holocausto como inspiração. A memória, em outras palavras, não é uma forma de razão instrumental. Pode-se compreender perfeitamente que, no que diz respeito ao Holocausto, algumas pessoas não desejem pensar por si mesmas; em torno do Holocausto, é necessário um consenso: qualquer outra coisa causa terror.

Pensamentos próprios?
Assim, será que é possível hoje que qualquer pessoa tenha o que se poderia definir como pensamentos próprios sobre o Holocausto? Ninguém encoraja de forma militante as vítimas do Holocausto a recordarem suas experiências inenarráveis -e recordá-las de um modo determinado. Portanto, o que desejamos dos perpetradores da matança e de seus descendentes?
Uma das coisas que desejamos é uma maneira de recordar que garanta, de alguma maneira, que uma repetição seja impossível. Mas é possível que essa própria demanda -mais semelhante a um exorcismo do que a um diálogo- seja ao mesmo tempo intimidadora demais e irrealista em excesso.
De fato, ela pode se assemelhar ao desejo de Rousseau quanto a uma história perdida. Justamente porque os alemães foram instruídos sobre o que devem recordar e sobre o modo como devem se sentir com relação à recordação, torna-se improvável que a complexidade da história e das experiências pessoais de cada alemão se pronuncie. Onde havia conflito -especialmente entre os milhões de "simples espectadores" que foram cúmplices do regime, ao fingirem que não viam o que se passava-, haverá agora obediência.
A memória forçada, como toda forma de doutrinação, é na verdade medo da memória ou daquilo que pode surgir dela, caso permitamos que funcione sem interferência. Para permitir que a memória funcione como é preciso, o esquecimento é necessário; o tempo, o metabolismo, a dilação do esquecimento. Esquecer precisa ser permitido, se queremos dar uma chance à memória -memória não-manipulada, memória desregrada.
Mas dar uma chance à memória talvez não seja exatamente a espécie de coisa que desejemos arriscar no momento. Depois de tantos memoriais, talvez valha a pena imaginar que espécie de museu um museu do esquecimento poderia ser.

Adam Phillips é psicanalista e coordenador da nova tradução, para o inglês, das obras completas de Sigmund Freud. Este texto foi publicado na revista "Index on Censorship".
Tradução de Paulo Migliacci.

São Paulo, domingo, 20 de novembro de 2005

ECO - O BUG DA MEMÓRIA


O escritor e teórico da literatura Umberto Eco discute os limites cada vez mais elásticos da capacidade de esquecer e comenta o erro grosseiro dos criadores da informática

O que lhe inspira o "apocalipse informático", aquele que ameaça todos os computadores do planeta no 1º de janeiro de 2000?
Umberto Eco - O problema verdadeiro não é como sair disso. Viu-se que é uma questão de dinheiro. O que me submerge numa confusão infinita é como uma coisa dessas pôde acontecer. Como um erro tão grosseiro pôde ser cometido por gênios do quilate dos inventores da informática contemporânea, homens que transformaram radicalmente nossa maneira de pensar, de trabalhar, de comunicar? Não eram homens de Neanderthal, com uma idéia imprecisa do passado e do futuro, mas homens de nosso tempo, que conheciam a história, que tinham aprendido que os séculos tinham o hábito de se sucederem um após o outro. Como não se deram conta, não digo há 2.000 anos, mas há menos de 30 anos (30 anos!), que seu software não funcionaria mais depois do ano 2000! Só há duas explicações possíveis.
A primeira é que sabiam perfeitamente o que faziam; só que a preocupação deles não era refletir sobre os problemas das pessoas às vésperas do ano 2000, mas vender um produto útil nos anos 1980; a memória dos computadores da época sendo mais limitada do que hoje, dois algarismos ocupando menos memória que quatro, eles então produziram o bug sem se preocupar com o futuro. (...)

Pergunta - Ninguém imaginava que essas máquinas dobrariam o cabo do terceiro milênio... Mas qual é a sua segunda explicação?
Eco -
Os informatas estavam de tal modo habituados a uma economia baseada na curta duração dos produtos que não pensavam que o que era vendido no início da década de 1980 estaria ainda em funcionamento em dezembro de 1999. Estavam de tal modo convencidos de que a renovação das máquinas se faria de dois em dois anos que não tiveram a bondade de resolver esse problema de calendário!
Mas, se de fato raciocinaram assim, cometeram um erro fatal. Esqueceram que todo o hardware e todo o software podem ser renovados, mas que a memória permanece sempre a mesma, quer se trate da data de Hiroshima ou do dia em que depositei cem francos em minha conta no banco. Desde a década de 1980 e até hoje um banco trocou de aparelhos e programas informáticos diversas vezes, mas cada novo programa teve de armazenar a memória precedente. Assim, desprezaram o fato de que a memória precedente estava marcada pelo sistema de codificação que eles tinham estabelecido na origem.

Pergunta - O sr. fala portanto de uma incapacidade de pensar o longo prazo. Não se poderá dizer que esta incapacidade sempre se verificou no passado?
Eco -
Certamente. A maior besteira da história não foi a de Napoleão quando vendeu a Louisiana para financiar a expedição à Rússia? Se ele não tivesse vendido a Louisiana, os Estados Unidos seriam um país francófono! A Louisiana era além disso a região mais culta -e depois, na época, não se limitava ao Estado da Louisiana atual, mas ocupava todo o curso do Mississippi. Mas, nessa história, pode-se apenas criticar a Napoleão por não ter previsto que os Estados Unidos iam se tornar o país mais poderoso do mundo. O problema do bug do milênio me parece de uma qualidade diferente. Torna-se o sintoma de uma relação difícil entre a memória, como tesouro do passado, e o futuro, como aquele pelo qual nos sentimos responsáveis. Se há um problema no limiar do ano 2000, ele diz respeito à perda da memória histórica.

Pergunta - Como o sr. pode falar de perda da memória no momento mesmo em que a Internet põe à nossa disposição uma espécie de memória total da humanidade, uma imensa biblioteca virtual.
Eco -
Eis então a ocasião de abordar o que defini como a crise atual da memória. Voltemos um instante à noção de progresso. Durante séculos tivemos a impressão de que nossa cultura se definia por uma acumulação ininterrupta de conhecimentos. Aprendemos o sistema solar de Ptolomeu, em seguida o de Galileu, depois o de Kepler etc. Mas isso é falso! A história das civilizações é uma sucessão de abismos onde toneladas de conhecimentos desaparecem!
Já os gregos foram incapazes de recuperar os conhecimentos matemáticos dos egípcios, o que causou o florescimento dos ocultismos que se fundamentam na idéia da recuperação de antigos saberes perdidos. Em seguida a Idade Média perdeu toda a ciência grega, todo o Platão menos um diálogo, e a metade de Aristóteles... Poderíamos continuar enumerando por muito tempo. Perceberíamos que em cada época, no decurso das eras, deixamos que se perdesse uma parte dos conhecimentos.

Pergunta - Está sugerindo que nós nos contentamos com redescobrir o que tinha sido esquecido.
Eco -
Não, muito pelo contrário! Se bem que às vezes se possa recuperar certos fragmentos do saber perdido, a gente é o mais das vezes impotente. O que eu digo é que a memória social e cultural tem por função filtrar, e não apenas conservar. Às vezes aprovamos essas filtragens (não ficamos desolados por termos perdido as matemáticas mesopotâmicas, se é que existiram, salvo quando somos historiadores das ciências) e às vezes as consideramos como censuras, quer sejam obra da Inquisição, dos stalinistas ou dos sectários do politicamente correto americano, que procuram eliminar dos manuais de história tudo o que pode aparecer como um atentado a essa ou aquela minoria racial por exemplo. Em todo caso, a função da memória, seja individual ou coletiva, não é somente reter, mas também filtrar.

Pergunta - A cultura é então feita de memória, mas também de esquecimento...
Eco -
Trata-se de uma dialética muito delicada, de um equilíbrio difícil. Comecemos pela memória. Não há sobrevivência sem memória. Se lhe aplicassem um golpe forte na cabeça e as áreas do cérebro que presidem à sua memória fossem prejudicadas, você não teria mais identidade. As sociedades sempre contaram com a conservação da memória pelas mesmas razões. A começar pelo ancião da tribo que à noite, debaixo de uma árvore, contava os feitos dos seus antepassados. Transmitia essas lendas às jovens gerações, e era assim que o grupo mantinha sua identidade.
Cada civilização encontra sua identidade quando um grande poeta compõe seu mito fundador. E quando, numa sociedade, uma censura qualquer apaga uma parte da memória, a sociedade conhece uma crise de identidade. Do mesmo modo, repito, quando por um excesso dos adeptos do politicamente correto se elimina dos manuais de história a viagem de Cristóvão Colombo porque falar de "descobrimento da América" seria dirigir insultos aos autóctones, a memória se acha amputada, alienada. A memória deve ser respeitada, mesmo quando é cruel.

Pergunta - Mas o sr. disse que a memória era a arte de conjugar a recordação e o esquecimento...
Eco -
Sim. Recordar é selecionar. Se me lembrasse de tudo o que se passou ontem, eu seria como Funes, de Borges...

Pergunta - ... que se lembrava de cada folha de cada uma das árvores que viu em sua vida, de cada letra de cada frase de todos os livros que leu...
Eco -
... estaria perdido. Funes, você se lembra, não pode nem agir nem sequer se mexer... O que caracteriza a transmissão da memória é a filtragem. E, com a filtragem, a generalização. Acabo de voltar de uma viagem a Istambul, guardo em minha memória várias lembranças. Mas, se tentasse contar tudo o que me aconteceu durante essa viagem, verificaria que já esqueci a metade. Deixei esvaecer-se, e felizmente, tudo o que não me parecia digno de atenção. E generalizei, fiz abstrações. Conservo na memória detalhes, muito precisos, mas também impressões vagas. (...)

Pergunta - E é nisso que residia a doença de Funes: ele não podia eliminar nada.
Eco -
Paremos aqui, porque a Internet, ou a World Wide Web, já é (ou será em breve) um imenso Funes. Até o presente a sociedade filtrava para nós, por intermédio dos manuais e das enciclopédias. Com a Web, todo o saber, toda a informação possível, mesmo a menos pertinente, está lá, a nossa disposição. Então pergunta-se: quem filtra? (...) Ampliamos nossa capacidade de estocagem da memória, mas não encontramos ainda o novo parâmetro de filtragem.

Pergunta - O sr. é partidário de uma reabilitação do esquecimento?
Eco -
Numa certa medida, sim, mas você tocou num ponto delicado. Escrevi há algum tempo um pequeno ensaio meio brincalhão, meio sério (evoco também esse problema em "O Pêndulo de Foucault") sobre a possibilidade de pôr em prática uma "ars oblivionalis", uma arte do esquecimento. Percebeu-se muito cedo que era impossível inventar uma técnica para esquecer, porque é impossível esquecer voluntariamente. Há mesmo nas artes mnemotécnicas do Renascimento, na "Plutosophia" de Gesualdo, um capítulo sobre os meios de esquecer que é inteiramente risível.
Em geral o esquecimento é acidental e involuntário. Pode ser favorecido pelo excesso de informação. Se, no decorrer de uma recepção, você é apresentado a 50 pessoas, não tardará a esquecer seus nomes. Isso significa que o esquecimento está muito ligado ao acaso, que não pode ser programado. Se quero me lembrar do seu nome, começo por repeti-lo para mim mesmo várias vezes, e isso funcionará talvez. Mas, se quero esquecê-lo e repito intensamente que quero, estou seguro de que vou me lembrar dele. Moral da história: diante da Web você não dispõe nem de regra para selecionar a informação, nem de regra para esquecer o que não merece ser conservado. Só dispõe de certos critérios de seleção na medida em que está intelectualmente preparado para enfrentar a prova de surfar na Web. (...)

Pergunta - Sua posição não incita a tratar com indulgência uma certa censura ideológica, seja ela religiosa ou política?
Eco -
Pessoalmente não aprovo esse tipo de censura. Mas permita-me explicar que, na ausência de um partido ou de uma igreja muito fortes, as pessoas recorrem às seitas para encontrar uma autoridade que se encarrega de filtrar as informações para elas. A liberdade de escolha entre uma multiplicidade de informações é positiva para os ricos (digo ricos do ponto de vista intelectual, aqueles que são capazes de discriminação crítica), mas não para os pobres. Parte-se para uma nova divisão de classes, não mais fundada no dinheiro, mas na capacidade de exercer seu espírito crítico e selecionar a informação.

Pergunta - Que soluções o sr. preconiza diante dessa globalização da memória?
Eco -
Uma certa aprendizagem da seleção poderia constituir um primeiro elemento de resposta. Uma disciplina completamente nova, por inventar. Prevejo, entretanto, uma situação desconfortável para a qual devemos nos preparar. Diante de uma informação total, à la Funes, cada um faz sua escolha. Antes se sabia que existiam escolhas privilegiadas, digamos a escolha marxista, a escolha reacionária etc. Podia-se prever de que maneira a informação seria selecionada conforme o texto de referência fosse a Bíblia, a "Encyclopédie", de Diderot, "O Capital", o "Cours de Linguistique Générale"...
No presente cada um faz sua escolha de maneira totalmente inédita e imprevisível. Cinco bilhões de pessoas no planeta, cinco bilhões de filtragens ideológicas. O resultado corre o risco de ser uma sociedade composta de identidades individuais justapostas (o que me parece um perigo). Não sei se uma sociedade como essa teria chances de funcionar. Parece-me que um pouco de gregarismo é necessário...


Tradução de José Laurenio de Melo.

São Paulo, Domingo, 08 de Agosto de 1999

PARA COMPREENDER A "VIDA DURA"


Pesquisas recentes confirmam que existe um fundamento físico para determinadas depressões

por Isaias Pessotti

Depressão significa, literalmente, variação quantitativa para baixo, uma redução de nível. Nível do terreno, da água no reservatório, da frequência com que alguém procura outras pessoas, ou se dedica a atividades produtivas ou criativas, ou a novos relacionamentos afetivos. O significado clínico original de "depressio" era abatimento, retraimento: condições que compõem o padrão de tristeza. Na psicopatologia mais antiga, desde Hipócrates, no século 5 a.C., essas condições, quando duradouras e acompanhadas por delírios tristes ou pessimistas, podiam ser sintoma de uma doença humoral; a loucura triste, a melancolia, produto da "meláina kolé", a bílis negra, a "atra bilis". Assim, a depressão jamais foi uma doença: era um sintoma, eventual, da melancolia. O tratamento prescrevia, além de dietas, poções ou fármacos que corrigissem o desarranjo humoral, práticas outras que configuravam uma primitiva psicoterapia. Celsus (42 a.C.- 37 d.C.) prescreve: "É preciso afastar do doente todas as causas de medo. Deve-se procurar distraí-lo com contos e jogos que mais lhe agradavam no estado de saúde. As suas obras, se as realizar, devem ser elogiadas com afabilidade e deixadas perto dele. Suas tristes fantasias serão combatidas com suaves admoestações, fazendo-lhe perceber que, nas coisas que o atormentam, ele deve achar motivos de encorajamento e não de inquietação". Ao lado do tratamento físico (farmacológico), note-se, emprega-se uma psicoterapia de reengajamento nos comportamentos deprimidos. E Sorano de Éfeso [médico romano, c. 98-138" admite que sintomas da melancolia podem ser a prostração (depressão do vigor físico), tristeza, má disposição diante dos parentes, além de idéias persecutórias, prantos sem motivo etc. Depressão é, pois, mero sintoma, entre outros. O tratamento inclui cataplasmas relaxantes sobre o epigastro (para relaxar as fibras nervosas e outras), assistir a comédias, escrever discursos (que devem ser elogiados com entusiasmo). Os iletrados devem ser motivados a exercer seus ofícios, com efusiva aprovação dos familiares. Os músicos devem ser encorajados a tocar seus instrumentos preferidos. Como se vê, além do tratamento físico, também Sorano adota alguma psicoterapia, que restaure a auto-estima e o engajamento em atividades criativas. Mas a depressão, enquanto tristeza, abatimento ou retraimento, não tem nenhum significado clínico se não for acompanhada de "imagens fantásticas", como afirma Galeno (séc 1º d.C.). Só nesse caso ela será sintoma de melancolia.

A dura realidade
Desde Plater (1625) até o "Traité" de Pinel (1801) [Philippe Pinel (1745-1826), "Traité Médico-Philosophique sur l'Aliénation Mentale, ou la Manie"", sem algum tipo de pensamento delirante não há mania (loucura exaltada, com certa hiperatividade física e mental) nem melancolia (loucura deprimida, com abatimento ou tristeza). Mais ainda, essas doenças podem agora ter origem puramente afetiva, passional. Podem resultar das condições adversas da vida afetiva, do confronto inevitável da "dura realidade". Será essa a concepção da melancolia, para os principais autores oitocentistas, depois de Pinel. Como Esquirol, Heinroth, em 1818, especifica o conceito, com o nome de "astenia", o equivalente grego da "depressio" latina: a astenia pode ser "depressão do sentimento e da imaginação, com concentração triste em si mesmo", ou "depressão da faculdade de pensar e/ou perda de noções", ou, ainda, "depressão eletiva da vontade, incapacidade de determinação a agir". Embora sintoma, a depressão agora pode se referir a atividades mentais (cognitivas e afetivas). Chama a atenção nessa trajetória do conceito de depressão-melancolia a mudança na indagação etiológica: na Antiguidade a causa era física, algum desarranjo humoral (hoje se diria bioquímico); desde Pinel, os contratempos afetivos (passionais) também podem causar a melancolia (ou a mania). Mas as alterações nas funções mentais, causadas por conflitos ou frustrações afetivas, são em última análise processos ocorridos no organismo. Qual é a estrutura cerebral afetada ou o tipo de disfunção cerebral específicos para os casos de mania ou de melancolia (astenia)? As laboriosas pesquisas anatomopatológicas levavam a resultados inconclusivos. Então, talvez, a mania, a melancolia e outros quadros clínicos não fossem doenças reais, mas artificiais, meras manifestações, distintas, mas resultantes de algum fundo doentio, mais genérico -que seria a verdadeira doença, natural. Subjacente às já clássicas mania e melancolia, agora doenças aparentes, simples expressões, sintomáticas, de alguma constituição orgânica geral, predisponente. A definição desse "fundo doentio predisponente" foi o grande desafio da psicopatologia desde Morel (1860) e Falret (1860). Trata-se de uma condição constitucional, eventualmente hereditária, que explicaria por que os contratempos afetivos ou distúrbios encefálicos só resultam em mania ou em melancolia em algumas pessoas, e não em outras. Ou por que algumas depressões (retraimento, desengajamento social ou afetivo) resultam em melancolia para algumas pessoas e são meros episódios normais, de uma "vida dura", para outras, Kraepelin, em 1915, classifica as patologias depressivas como "estados constitucionais depressivos" e, com isso, permite falar em depressão "constitucional", isto é, resultante de uma predisposição orgânica. É o fundamento da idéia de que há depressões endógenas, independentes das experiências da vida social ou afetiva. Uma idéia que encontra eco em pesquisas recentes. Obviamente, para uma depressão patológica, causada seguramente por alguma disfunção na bioquímica neuronal, a terapia ideal e eficaz pode ser algum fármaco que corrija tais disfunções. Mas a clínica mostra que essas depressões "endógenas" não são tão frequentes como as depressões outras, resultantes das dificuldades afetivas ou sociais, casos em que o fármaco pode ser ineficaz, inútil. Isso se, além do alívio do sofrimento (episódico), se pretende uma real cura. O vago conceito de "fundo orgânico predisponente", eventual gerador dos estados depressivos "constitucionais" e de outras patologias, passa por uma reformulação fecunda a partir da obra de Bleuler (1908). Nela ele perde o fatalismo que lhe atribuíram Morel e, até certo ponto, Kraepelin, depois de Krafft-Ebing. Bleuler não rejeita a existência de fatores predisponentes orgânicos (fisiológicos, bioquímicos ou endócrinos, por exemplo). Mas afirma que a ação deles não é absoluta, é mediada por processos psicodinâmicos subjacentes. As formas maniacais, histéricas ou depressivas (melancólicas) são, sim, manifestações de processos doentios mais amplos, mas processos de natureza pessoal, nos quais as condições orgânicas de base devem interagir com resistências da pessoa, singular. Resistências mais fortes ou mais fracas. Para Bleuler, então, as diversas depressões são apenas manifestações não de uma determinação orgânica inexorável, mas de uma certa "personalidade", isto é, são resultados de uma interação única entre um repertório ou uma história pessoal de sentimentos e motivações com condições constitucionais puramente orgânicas.

Cultura depressiva
É nessa concepção etiológica que se fundam duas idéias atuais: uma, a de que as condições socioeconômicas ou os modelos educacionais podem fortalecer ou enfraquecer a "personalidade" (incluindo auto-estima, valores pessoais, história afetiva etc.) e, desse modo, aumentar ou reduzir as "resistências da pessoa" às contingências traumáticas ou desestabilizantes da vida cotidiana; outra, a de que a psicoterapia (formal ou não), apenas ela, pode fortalecer preventivamente ou restaurar essas resistências.
Vivemos hoje numa cultura cada vez mais depressiva, como adverte Roudinesco [Elisabeth Roudinesco, historiadora e psicanalista francesa". Mais depressiva não só porque o cotidiano é penoso, repleto de frustrações, fracassos e decepções desanimadoras, mas, principalmente, porque gera "personalidades" frágeis, pouco resistentes à frustração, à perda, ao fracasso, à incompreensão do outro. E, por isso, mais susceptíveis à desestabilização diante das agruras normais da vida ou diante de alguma hipotética predisposição orgânica.
Quando a depressão não é claramente endógena e, portanto, tratável com fármacos, é da psicoterapia que se pode esperar alguma cura ou prevenção. O fármaco pode aliviar o sofrimento, como o álcool pode fazer esquecer a perda de um afeto, mas o álcool não traz de volta o amor perdido, nem o remédio traz a restauração da auto-estima, a reavaliação de seus afetos, a redefinição de seus valores. Ou, em resumo, a recuperação da própria significação no mundo.
Uma tarefa gigantesca, a da psicoterapia, nestes tempos em que tudo parece conspirar para sufocar a "pessoa" e anular a subjetividade. Seja banalizando o sentimento e os valores pessoais, já que cada um vale menos pelo que sente ou sabe, do que pelo que consome (prestígio, posses, sucesso social) e pelo que produz (produtividade, "profissionalismo", competitividade).
Não espanta, pois, que se fale em epidemia de depressão. O que há, na verdade, é uma sociedade depressiva e uma epidemia de diagnósticos de depressão. Há uma situação de "vida dura" que implica frequentes frustrações, fracassos, decepções e na qual a subjetividade de alguns resiste mais que a de outros: alguns são mais resistentes aos contratempos da vida, embora também sofram. Mas estão mais prontos para o sofrimento, talvez porque sejam mais confiantes em suas possibilidades, mais firmes em seus valores ou, simplesmente, mais resignados (e, portanto, mais fortes). Em resumo, têm uma sólida subjetividade. Ou, noutros termos, um "eu" mais sólido.
Há uma epidemia de diagnósticos. Explico: primeiro, porque tais diagnósticos, via de regra, são baseados num quadro de sintomas pré-catalogados por algum manual. São diversos, e suas combinações são várias. Assim, muitas pessoas se "encaixam" no diagnóstico de depressão, quando se prescinde das demoradas indagações etiológicas da psiquiatria tradicional ("time is money", também para o paciente); segundo, porque o decurso da doença "per se" (ou transtorno, ou distúrbio) cada vez interessa menos do que a eventual remissão dos sintomas. À medida que o quadro sintomático passa a "ser" a doença, a cura será a remissão dos sintomas. Então, o diagnóstico favorece a prescrição do fármaco que os abole. A resistência pessoal ao sofrimento e aos infortúnios da vida permanecerá intocada.
Graças aos meios de comunicação de massa, à farta propaganda da indústria farmacêutica, à difusão do DSM, manual de quadros diagnósticos oficial, com mais de mil quadros psiquiátricos, a vida se psiquiatrizou. "Depressão" e, mais recentemente, "síndrome do pânico" fazem parte da linguagem cotidiana em numerosos grupos sociais. E são já popularmente empregadas como "diagnósticos" por ampla variedade de pessoas. Ao ponto de "depressão" ter-se tornado sinônimo de desânimo, tristeza, decepção, frustração etc. São estados normais do que antes se designava "vida dura".
Encontrar um nome para a ameaça ou o sofrimento é uma forma de reduzir a ansiedade. Um diagnóstico médico de depressão reduz a ansiedade do paciente, dá um nome ao seu fantasma. E lhe permite abrir mão de ulteriores indagações sobre si mesmo, nem sempre agradáveis. Ser rotulado, assim como rotular, é cômodo. E, diante da influência higienista da "mídia", a apregoar a necessidade de estar sempre sadio, hígido, de corpo e de mente, qualquer sensação de anormalidade pode parecer sintoma de doença, de estar anormal, necessitando de tratamento. Como se normalidade não incluísse perdas e sofrimentos, desafios e impotências, mas fosse um estado de anestesia permanente. Há caminhos para esse hedonismo higiênico: a dependência de fármaco ou, talvez, certas formas de esquizofrenia. São caminhos para abdicar da (dura) afirmação da própria subjetividade e se tornar mero objeto. Imune ao sofrimento, às escolhas, aos riscos do viver. Às depressões da vida.


Isaias Pessotti é escritor e ex-professor titular de psicologia da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto (SP). É autor de "Os Nomes da Loucura" e "O Século dos Manicômios" (ed. 34), entre outros.

São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003