PETER PÁL PELBART
No início dos anos 70, em resposta a um amigo que o acusava de estar filosoficamente acuado, o pensador Gilles Deleuze escreveu: "Sou de uma geração, uma das últimas gerações que foram mais ou menos assassinadas com a história da filosofia. A história da filosofia exerce em filosofia uma função repressora evidente... Você não vai se atrever a falar em seu nome enquanto não tiver lido isto e aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo. Na minha geração muitos não escaparam disso, outros sim, inventando seus próprios métodos e novas regras, um novo tom. Quanto a mim, "fiz" por muito tempo história da filosofia... Mas eu me compensava de várias maneiras. Primeiro, gostando dos autores que se opunham à tradição racionalista dessa história (e entre Lucrécio, Hume, Espinosa, Nietzsche, há para mim um vínculo secreto constituído pela crítica do negativo, pela cultura da alegria, o ódio à interioridade, a exterioridade das forças e das relações, a denúncia do poder... etc.). O que eu mais detestava era o hegelianismo e a dialética..."
Em seguida, Deleuze explica como conseguiu safar-se desse impasse: a partir dos autores comentados, produzia leituras insólitas, filhos ligeiramente "monstruosos": "O autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer. Meu livro sobre Bergson me parece exemplar nesse gênero." (`Carta a um crítico severo', em "Conversações").
O livro sobre Bergson a que o autor se refere em sua carta sai agora em português pela Editora 34 com o título de "Bergsonismo", na fina e esmerada tradução de Luiz Orlandi. Ao debruçar-se sobre um filósofo já "clássico" e hoje um pouco esquecido como Bergson, Deleuze faz neste livro de 1966 uma monografia aparentemente despretensiosa. Aborda os grandes temas de Bergson: a intuição, a memória, a duração, o impulso vital. Mas o leitor se dá conta, desde logo, que está diante de um bergsonismo pouco comum, em todo caso nada espiritualista. A duração (nome dado por Bergson ao tempo) deixa de ser apenas uma experiência psicológica, para tornar-se um caso da duração ontológica, essência variável das coisas, condição da experiência. A memória, por sua vez, não é pensada como sendo interior a nós, nós é que somos interiores a uma gigantesca Memória, imemorial e ontológica, virtual e inconsciente. O impulso vital passa a designar o movimento pelo qual o ser se atualiza, não a partir de um "possível" ideal que o presente viria desovar, mas a partir de uma virtualidade (real) a ser desdobrada, diferenciada. A vida mesma é concebida como uma tal produção de diferenças - a vida é invenção.
Como se vê, esse conjunto ainda é Bergson, mas já tudo gira em torno de um eixo que nosso século não cansará de ecoar: a idéia de diferença. No artigo seminal de Deleuze publicado dez anos antes deste seu livro e com razão incluído no presente volume, intitulado A Concepção da Diferença em Bergson, este conceito conduz sistematicamente a leitura do filósofo. O método da intuição é definido como o "gozo da diferença", a duração ou a vida são concebidas como aquilo que difere de si mesmo, o próprio homem é aquele em quem a diferença eleva-se à consciência de si. Na contracorrente de um hegelianismo ainda dominante na época, para Deleuze é a diferença que importa, não o negativo. Ao lançar as bases de sua própria ontologia materialista, Deleuze insiste que em Bergson o movimento do ser se dá por diferenciação interna, criação positiva, e não por contradição, num jogo dialético da determinação negativa. O filósofo chega a afirmar que se a noção de diferença pode trazer uma certa luz ao bergsonismo, "o bergsonismo deve trazer a maior contribuição para uma filosofia da diferença". É o que se percebe neste livro ligeiramente "monstruoso": a fineza penetrante de Deleuze retoma com fidelidade o conjunto da filosofia bergsoniana, mas ao mesmo tempo nela produz tantas inflexões sutis (algumas nietzscheanas) que Bergson aparece como um precursor das filosofias da diferença, das quais o próprio Deleuze foi um dos expoentes.
O belo livro de Bento Prado Jr. a ser lançado em Paris, intitulado Presença e Campo Transcendental, escrito mais ou menos na mesma época que o de Deleuze e com o qual ele tem inúmeras afinidades, ajuda a lançar luz sobre esta relação entre Bergson e sua posteridade. Lembremos da observação arguta de François Laruelle: nosso século vive sob o signo da Diferença assim como o 19 se constelou em torno da Dialética. Se antes a Diferença era apenas um procedimento periférico, uma escrava da Contradição, como na Dialética, e depois da Estrutura, como no estruturalismo e derivados, tornou-se a partir de um certo momento ela mesma uma problemática, um princípio real e mesmo uma emoção "a priori, uma verdadeira sensibilidade filosófica ou transcendental sem a qual a filosofia estaria morta de hegelianismo ou de estruturalismo: de tédio..." Talvez os textos de Deleuze sobre Bergson, nesta porosidade instigante entre filosofia e história da filosofia, sejam a marca inaugural desta reviravolta "atmosférica" na filosofia francesa.
No entanto, este livro não interessa apenas aos filósofos, longe disso. Para quem hoje necessita aprofundar noções como a de virtual, ou fica intrigado com a reintrodução da seta do tempo nas ciências (por exemplo, nas pesquisas de Prigogine e Stengers), ou quer mergulhar nas aventuras da memória e seus paradoxos, o livro de Deleuze é um prato cheio. Escrito em linguagem clara e acessível, sem perder em nada a complexidade de seu objeto, vemos emergir um Bergson desempoeirado, com o frescor das filosofias feitas para pensar o presente.
Peter Pal Pelbart é professor de filosofia na PUC-SP
resenha do livro de Gilles Deleuze, Bergsonismo, Editora 34, 2000
publicada no Estado de S. Paulo — Domingo, 15 de outubro de 2000
http://br.geocities.com/polis_contemp/peter.html
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