sexta-feira, 5 de setembro de 2008

DELEUZE TIROU A POEIRA DAS IDÉIAS DE BERGSON

PETER PÁL PELBART


No início dos anos 70, em resposta a um amigo que o acusava de estar filosoficamente acuado, o pensador Gilles Deleuze escreveu: "Sou de uma geração, uma das últimas gerações que foram mais ou menos assassinadas com a história da filosofia. A história da filosofia exerce em filosofia uma função repressora evidente... Você não vai se atrever a falar em seu nome enquanto não tiver lido isto e aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo. Na minha geração muitos não escaparam disso, outros sim, inventando seus próprios métodos e novas regras, um novo tom. Quanto a mim, "fiz" por muito tempo história da filosofia... Mas eu me compensava de várias maneiras. Primeiro, gostando dos autores que se opunham à tradição racionalista dessa história (e entre Lucrécio, Hume, Espinosa, Nietzsche, há para mim um vínculo secreto constituído pela crítica do negativo, pela cultura da alegria, o ódio à interioridade, a exterioridade das forças e das relações, a denúncia do poder... etc.). O que eu mais detestava era o hegelianismo e a dialética..."


Em seguida, Deleuze explica como conseguiu safar-se desse impasse: a partir dos autores comentados, produzia leituras insólitas, filhos ligeiramente "monstruosos": "O autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer. Meu livro sobre Bergson me parece exemplar nesse gênero." (`Carta a um crítico severo', em "Conversações").


O livro sobre Bergson a que o autor se refere em sua carta sai agora em português pela Editora 34 com o título de "Bergsonismo", na fina e esmerada tradução de Luiz Orlandi. Ao debruçar-se sobre um filósofo já "clássico" e hoje um pouco esquecido como Bergson, Deleuze faz neste livro de 1966 uma monografia aparentemente despretensiosa. Aborda os grandes temas de Bergson: a intuição, a memória, a duração, o impulso vital. Mas o leitor se dá conta, desde logo, que está diante de um bergsonismo pouco comum, em todo caso nada espiritualista. A duração (nome dado por Bergson ao tempo) deixa de ser apenas uma experiência psicológica, para tornar-se um caso da duração ontológica, essência variável das coisas, condição da experiência. A memória, por sua vez, não é pensada como sendo interior a nós, nós é que somos interiores a uma gigantesca Memória, imemorial e ontológica, virtual e inconsciente. O impulso vital passa a designar o movimento pelo qual o ser se atualiza, não a partir de um "possível" ideal que o presente viria desovar, mas a partir de uma virtualidade (real) a ser desdobrada, diferenciada. A vida mesma é concebida como uma tal produção de diferenças - a vida é invenção.


Como se vê, esse conjunto ainda é Bergson, mas já tudo gira em torno de um eixo que nosso século não cansará de ecoar: a idéia de diferença. No artigo seminal de Deleuze publicado dez anos antes deste seu livro e com razão incluído no presente volume, intitulado A Concepção da Diferença em Bergson, este conceito conduz sistematicamente a leitura do filósofo. O método da intuição é definido como o "gozo da diferença", a duração ou a vida são concebidas como aquilo que difere de si mesmo, o próprio homem é aquele em quem a diferença eleva-se à consciência de si. Na contracorrente de um hegelianismo ainda dominante na época, para Deleuze é a diferença que importa, não o negativo. Ao lançar as bases de sua própria ontologia materialista, Deleuze insiste que em Bergson o movimento do ser se dá por diferenciação interna, criação positiva, e não por contradição, num jogo dialético da determinação negativa. O filósofo chega a afirmar que se a noção de diferença pode trazer uma certa luz ao bergsonismo, "o bergsonismo deve trazer a maior contribuição para uma filosofia da diferença". É o que se percebe neste livro ligeiramente "monstruoso": a fineza penetrante de Deleuze retoma com fidelidade o conjunto da filosofia bergsoniana, mas ao mesmo tempo nela produz tantas inflexões sutis (algumas nietzscheanas) que Bergson aparece como um precursor das filosofias da diferença, das quais o próprio Deleuze foi um dos expoentes.


O belo livro de Bento Prado Jr. a ser lançado em Paris, intitulado Presença e Campo Transcendental, escrito mais ou menos na mesma época que o de Deleuze e com o qual ele tem inúmeras afinidades, ajuda a lançar luz sobre esta relação entre Bergson e sua posteridade. Lembremos da observação arguta de François Laruelle: nosso século vive sob o signo da Diferença assim como o 19 se constelou em torno da Dialética. Se antes a Diferença era apenas um procedimento periférico, uma escrava da Contradição, como na Dialética, e depois da Estrutura, como no estruturalismo e derivados, tornou-se a partir de um certo momento ela mesma uma problemática, um princípio real e mesmo uma emoção "a priori, uma verdadeira sensibilidade filosófica ou transcendental sem a qual a filosofia estaria morta de hegelianismo ou de estruturalismo: de tédio..." Talvez os textos de Deleuze sobre Bergson, nesta porosidade instigante entre filosofia e história da filosofia, sejam a marca inaugural desta reviravolta "atmosférica" na filosofia francesa.


No entanto, este livro não interessa apenas aos filósofos, longe disso. Para quem hoje necessita aprofundar noções como a de virtual, ou fica intrigado com a reintrodução da seta do tempo nas ciências (por exemplo, nas pesquisas de Prigogine e Stengers), ou quer mergulhar nas aventuras da memória e seus paradoxos, o livro de Deleuze é um prato cheio. Escrito em linguagem clara e acessível, sem perder em nada a complexidade de seu objeto, vemos emergir um Bergson desempoeirado, com o frescor das filosofias feitas para pensar o presente.



Peter Pal Pelbart é professor de filosofia na PUC-SP

resenha do livro de Gilles Deleuze, Bergsonismo, Editora 34, 2000


publicada no Estado de S. Paulo — Domingo, 15 de outubro de 2000

http://br.geocities.com/polis_contemp/peter.html


IDENTIDADE À DERIVA

A história dos moçambiques é a menos conhecida dentre os negros que vieram escravizados ao Brasil, em parte por serem mais suscetíveis a doenças locais e também pelo predomínio de indivíduos masculinos

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Já se disse que o comércio negreiro nos aproximou tanto da África que, de oceano, o Atlântico virou rio. Se o Índico, ao contrário, ainda hoje nos remete sobretudo a mistérios, é porque em grande medida o tráfico entre a costa oriental africana e as Américas encarnou a mais tênue ponte engendrada pelo tempo do cativeiro.
Macuas, macondes, angonis, chopes e demais moçambiques representavam menos de 5% dos africanos escravizados no Brasil do século 18. Não era para menos. Quem os comercializava eludia a longa rota para a América portuguesa, em cujos navios talvez imperassem os maiores índices de mortalidade da navegação moderna. Menos arriscado era vendê-los aos haréns islâmicos do golfo Pérsico, aos franceses que plantavam cana-de-açúcar em diversas ilhas do Índico ou, mais a leste, aos potentados hindus.
Foi necessário que os portos coloniais se abrissem ao comércio internacional, em 1808, para os golfos da Guiné e Angola se tornarem incapazes de arcar sozinhos com a nova escala da demanda brasileira.
Só então a rota índica se consolidou, embora de maneira nunca extravagante -os moçambiques representaram cerca de 20% do total de africanos aqui desembarcados no século 19.

Horrores na travessia
Para serem competitivos, os traficantes da seção índica lotavam seus negreiros como poucas vezes se vira, e os horrores experimentados durante a travessia oceânica tornaram-se ainda mais correntes. Numa noite de tempestade de 1843, o reverendo inglês Pascoe Grenfell Hill assegura ter visto 400 infelizes serem trancafiados em um porão de 11 m de comprimento por 6,5 m de largura e pouco mais de um metro de altura.
Na manhã seguinte, dali foram retirados 54 corpos, despedaçados na luta pelo precioso ar de umas poucas escotilhas.
Navios superlotados de homens, ressalte-se. Pois, se no Atlântico os escravos do sexo masculino suplantavam as mulheres numa proporção de 2 por 1, nos negreiros do Índico a cifra facilmente dobrava. Tratava-se de uma escolha lógica: no Rio de Janeiro, por exemplo, os homens adultos alcançavam preços 30% superiores aos das escravas.


O reverendo inglês Grenfell Hill viu 400 infelizes serem tranca-fiados em um porão de 11 m de compri-mento por 6,5 m de largura e pouco mais de um metro de altura


Os caminhos pelos quais o tráfico índico se consolidou remetem à drumoniana constatação de que todo ato instaura uma situação. Logo, se a história dos afro-orientais é, hoje, a menos conhecida dentre todos os africanos no Brasil, isto se deve em grande parte às opções implícitas ao seu traslado.
A invisibilidade derivava da morte que os dizimava ainda nos primeiros tempos de Brasil, em proporções bem superiores às detectadas para outros grupos de africanos. Feneciam mais rápido e de modo qualitativamente distinto, conforme sugerem os inventários post-mortem do século 19: os afro-orientais padeciam sobretudo de infecções, e os oriundos dos portos atlânticos em especial de traumas.

Menor resistência
Protagonistas recentes da migração forçada, os moçambiques resistiam menos à esfera microbiana brasileira, tornando-se presas mais fáceis da disenteria e da varíola do que angolas, congos, benguelas, gêges ou nagôs, por exemplo. Por isso dispunham, em escala, de menor tempo do que estes para estreitar laços, cultivar hábitos e socializar símbolos. Para fincar raízes, enfim.
Sua invisibilidade se nutria também do esgarçado excedente masculino vigente entre eles, do qual redundavam exíguas freqüências de arranjos familiares -pouco mais de 10% dos moçambiques viviam com seus cônjuges e/ou filhos, contra um quinto dos congo-angolanos e afro-ocidentais. Se a isso se acrescenta a fragilidade microbiana, veremos o quão difícil era para um afro-oriental se aculturar e gerar descendentes, os pilares de todo processo de ressignificação cultural sólido e duradouro. Não surpreende que tão poucos entre eles conseguissem obter cartas de alforria.

Pulverização cultural
Por fim, embora vários estudos demonstrem que a escolha dos cônjuges escravizados era presidida por um critério altamente seletivo, com a endogamia por origem se impondo, também nesse aspecto os moçambiques divergiam. Os registros de casamentos depositados em arquivos do Rio de Janeiro são enfáticos a esse respeito.
Apenas um entre cada dez moçambiques se unia a um cônjuge originário da África Oriental.
Em contrapartida, de metade a três quartos dos embarcados na região congo-angolana contraíam matrimônio entre si. Presas tenras de um destino injusto, os poucos moçambiques que casavam faziam-no por meio de uma enorme pulverização cultural, igualmente derivada do exorbitante predomínio masculino.
Em um plano mais geral, esses fragmentos da trajetória afro-oriental reiteram a idéia de que a tragédia humana não tem porto de partida nem de chegada. No varejo demográfico, eles sugerem terem sido inúmeros os caminhos pelos quais a chamada crioulização (o outro nome da aculturação) vicejava -ou não- entre os africanos no Brasil.
Tantos e qualitativamente tão díspares entre si a ponto de tornar ocioso postular a existência de uma identidade "africana" entre nós, sobretudo quando o cativeiro já não passa de tecido morto.
Nada que desespere, entretanto. Afinal, parafraseando Jorge Luis Borges, coisa nenhuma no universo sabe que sua forma é única.

Manolo Florentino é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira). Escreve na seção "Autores", do Mais!.

São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006

A MEMÓRIA FORÇADA

O psicanalista inglês Adam Phillips rebate aqueles que vêem a lembrança como o último vestígio do mito da redenção nos planos pessoal e histórico e defende a necessidade do esquecimento nos dias atuais

ADAM PHILLIPS

Há uma passagem estranha, pelo menos aos olhos de um leitor moderno, na dedicatória de Rousseau em seu "Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens" (Martins Fontes), publicado em 1754. Ele está discutindo os romanos -"aquele modelo de povo livre" que "não tinha condição de se governar autonomamente quando primeiro se libertou da opressão dos tarquinos". Os romanos demoraram ainda muito tempo a experimentar a liberdade, porque seriam "almas enervadas, ou melhor, brutalizadas, pela tirania".


Afirmar que aqueles que esquecem o passado provavelmente estão condenados a repeti-lo não equivale a dizer que aqueles que o recordam não o farão


O passado "traumático" dos romanos como vítimas e praticantes da brutalidade e as dificuldades que isso lhes causou com relação à sua liberdade e capacidade de autogoverno fazem com que Rousseau profira um estranho voto. "Por esse motivo", escreve ele, "eu desejaria como meu país uma feliz e pacífica comunidade em que a história tivesse se perdido, por assim dizer, nas trevas do tempo, e que tivesse sofrido apenas os ataques hostis necessários a despertar e fortificar a coragem e patriotismo de seus habitantes; uma comunidade cujos cidadãos, por muito tempo acostumados a uma sábia independência, fossem não só livres, mas dignos da liberdade".
Como sempre, as contradições e confusões do texto de Rousseau são tão reveladoras quanto suas propostas explícitas. O país que ele deseja é uma comunidade pacífica e feliz, que tenha sido vítima apenas do tipo de hostilidade que despertou o que ela tinha de melhor. Se esse é de fato o caso, qual é a necessidade de que a história desse país se tivesse perdido nas trevas do tempo?

Um passado perdido
Tendo em vista a posição dos romanos, que ele toma como exemplo, fica claro que, na opinião dele, uma história adversa faz mal à comunidade -o que, evidentemente, tem sérias implicações, já que tanto Rousseau quanto seus leitores sabiam perfeitamente que raras sociedades desfrutam de passados imaculados (a persistência dos mitos quanto a uma era dourada são o perfeito testemunho desse fato).
O que soa estranho para o leitor moderno é a crença declarada de Rousseau de que um bom futuro, "uma comunidade feliz e pacífica", depende de um passado perdido; um passado, em outras palavras, que foi esquecido porque todos os traços dele desapareceram.
Hoje é muito mais provável que lamentemos, temamos, evitemos e tentemos recuperar nossos passados perdidos. Esquecer, tanto na vida pessoal quanto na vida política, se tornou prática encarada com uma espécie de temor supersticioso. Até mesmo aqueles que acreditam que já não podemos ser salvos presumem que a memória pode nos ajudar, que a lembrança é nosso último vestígio do mito da redenção.
Tentativas de abolir o passado ou de dogmaticamente substituí-lo pelas versões dele, que por algum motivo viemos a preferir, são hoje encaradas com suspeita por muitas pessoas, até mesmo por aquelas que acreditam que escrever história seja sempre um ato de reescrever o passado, que toda a história é história revisionista.
Aqueles que negam o Holocausto são diferentes dos historiadores que procuram determinar exatamente quantas pessoas foram mortas nos campos de concentração, mas ainda assim precisaríamos saber sobre o que, exatamente, aquilo de que desejam nos persuadir -ou se persuadir-, deliberada ou acidentalmente, com suas investigações e negações. Voluntárias ou involuntárias, ou seja, encorajadas ou desencorajadas, as memórias têm sempre um futuro na mente.
Assim, quando dizemos que alguém deveria recordar o Holocausto, é preciso que determinemos com o máximo de clareza que objetivo teria essa lembrança. Sabemos, por exemplo, que afirmar que aqueles que esquecem o passado provavelmente estão condenados a repeti-lo não equivale a dizer que aqueles que o recordam não o farão.
Na medida em que venham a repeti-lo, em qualquer grau -e nem todos os traumas se repetem, a não ser que definamos trauma como aquilo que se repete- , é provável que o repitam de maneira diferente. Tendemos a pensar, tendo esse quadro em mente, que aqueles que se recordam do passado e o repetem o fazem como ato de restauração, renovação, celebração, reconsideração e assim por diante, enquanto aqueles que esqueceram o passado -ou o reprimiram, como dizemos hoje em dia com relação aos traumas- provavelmente o fizeram sem saber que era isso o que estavam fazendo.
Nesse mito redentor da memória, lembrar o fato terrível -o pecado original, o trauma cultural ou pessoal-, mantê-lo em mente, supostamente mitigaria ou até impediria uma repetição. Lembrar o trauma é imaginar novamente uma vida que o incorpora assim como lembrar o crime é lembrar a lei que não deveria ter sido violada.

Obsessão pela memória
Existe uma crença esperançosa sob o mito redentor da memória: a de que aquilo que deve ser lembrado -desde que nos lembremos das coisas certas e da maneira certa- beneficia o nosso bem-estar e até mesmo a nossa virtude. Recordar, se o fizermos da maneira apropriada, nos dará as vidas que desejamos.
A memória pode até nos manter cordatos. Mas, na verdade, estamos conscientes, em área distinta de nossas mentes, de que na verdade não é possível que a memória seja mais virtuosa do que aqueles que a manipulam. Os nazistas estavam conduzindo sua versão do processo de recordação ao reciclar o mito de suas origens arianas; reconstituir, documentar, prestar testemunho, analisar e divulgar atrocidades não parece reduzir seu escopo ou escala.
O nazismo é agora só mais uma iconografia e uma ideologia disponível para uso -tanto em afirmação quanto em oposição- no campo da cultura. A obsessão pela memória nos cega para os abusos que ela pode sofrer e para os usos do esquecimento. Quanto a determinadas coisas -e o Holocausto talvez seja uma delas, se bem que apenas uma entre muitas-, deveríamos estar nos perguntando não qual é a melhor maneira de recordar, mas, sim, qual é a melhor maneira de esquecer.
Nosso medo (moderno) é o de que não obtenhamos sucesso no esquecimento ou de que o esquecimento não seja possível; talvez, evidentemente, exista também o desejo de que as atrocidades não sejam esquecidas; de que, na verdade, não sejamos capazes de nos encarar como criaturas que seriam realmente capazes de esquecer coisas como essas.
Tendemos a esquecer as experiências que são fortes demais para nós, aquelas que, na linguagem redutora da psicologia, nos causam um excesso de prazer ou de sofrimento.
Consideramos aquilo que é passível de esquecimento como trivial ou como insuportável; e nesse quadro temos um lugar para armazenar o insuportável; mas, sob o mesmo critério, acreditamos que aquilo (a lembrança, a experiência, o desejo) continue lá, em algum lugar, sempre capaz de retorno. E termos um lugar para aquilo é trivial, no qual essas coisas são efetivamente eliminadas.
Há a obsessão e há o descarte, e nem sempre está em nosso poder decidir qual é qual. E é esse fator, talvez acima de todos os outros, que faz com que obrigar as pessoas a lembrarem -assim como forçá-las a comer- seja ao mesmo tempo tão implausível e tão problemático moralmente.
O nosso desejo de que o povo alemão recorde o Holocausto e que o recorde como algo terrível equivale a lhes dizer algo como: "Nós sempre estamos propensos a esquecer nossa preocupação para com os outros, e talvez a nossa preocupação para com os outros seja o verdadeiro trauma que faríamos qualquer coisa para esquecer. Vocês jamais devem se esquecer disso outra vez".
Na pior das hipóteses, podemos, da maneira mais gentil que existe, estar obedecendo à lei de talião: torturando os torturadores e nos tornando uma versão da coisa que nos horroriza (talvez não seja incidental que a culpa muitas vezes torne as pessoas agressivas, e que, portanto, fazer com que as pessoas se sintam culpadas freqüentemente provoque nelas exatamente aquilo que se está tentando evitar).
Fazer com que as pessoas recordem tende a presumir que seja possível calcular as respostas que terão às memórias. É uma tentativa de impor uma solução artificial, quando soluções artificiais são parte do problema. A recordação forçada -a absurda idéia de que seria possível aprender de cor a história pessoal e em uma versão correta- na verdade demonstra medo da história: um bem fundamentado temor de que o passado esteja sujeito a múltiplas e variáveis interpretações.
As coisas que recordamos e os caminhos pelos quais a memória nos conduz são imprevisíveis. As chamadas democracias liberais não conseguem escapar ao fato de que alguns de seus membros provavelmente desejarão recordar o Holocausto como inspiração. A memória, em outras palavras, não é uma forma de razão instrumental. Pode-se compreender perfeitamente que, no que diz respeito ao Holocausto, algumas pessoas não desejem pensar por si mesmas; em torno do Holocausto, é necessário um consenso: qualquer outra coisa causa terror.

Pensamentos próprios?
Assim, será que é possível hoje que qualquer pessoa tenha o que se poderia definir como pensamentos próprios sobre o Holocausto? Ninguém encoraja de forma militante as vítimas do Holocausto a recordarem suas experiências inenarráveis -e recordá-las de um modo determinado. Portanto, o que desejamos dos perpetradores da matança e de seus descendentes?
Uma das coisas que desejamos é uma maneira de recordar que garanta, de alguma maneira, que uma repetição seja impossível. Mas é possível que essa própria demanda -mais semelhante a um exorcismo do que a um diálogo- seja ao mesmo tempo intimidadora demais e irrealista em excesso.
De fato, ela pode se assemelhar ao desejo de Rousseau quanto a uma história perdida. Justamente porque os alemães foram instruídos sobre o que devem recordar e sobre o modo como devem se sentir com relação à recordação, torna-se improvável que a complexidade da história e das experiências pessoais de cada alemão se pronuncie. Onde havia conflito -especialmente entre os milhões de "simples espectadores" que foram cúmplices do regime, ao fingirem que não viam o que se passava-, haverá agora obediência.
A memória forçada, como toda forma de doutrinação, é na verdade medo da memória ou daquilo que pode surgir dela, caso permitamos que funcione sem interferência. Para permitir que a memória funcione como é preciso, o esquecimento é necessário; o tempo, o metabolismo, a dilação do esquecimento. Esquecer precisa ser permitido, se queremos dar uma chance à memória -memória não-manipulada, memória desregrada.
Mas dar uma chance à memória talvez não seja exatamente a espécie de coisa que desejemos arriscar no momento. Depois de tantos memoriais, talvez valha a pena imaginar que espécie de museu um museu do esquecimento poderia ser.

Adam Phillips é psicanalista e coordenador da nova tradução, para o inglês, das obras completas de Sigmund Freud. Este texto foi publicado na revista "Index on Censorship".
Tradução de Paulo Migliacci.

São Paulo, domingo, 20 de novembro de 2005

ECO - O BUG DA MEMÓRIA


O escritor e teórico da literatura Umberto Eco discute os limites cada vez mais elásticos da capacidade de esquecer e comenta o erro grosseiro dos criadores da informática

O que lhe inspira o "apocalipse informático", aquele que ameaça todos os computadores do planeta no 1º de janeiro de 2000?
Umberto Eco - O problema verdadeiro não é como sair disso. Viu-se que é uma questão de dinheiro. O que me submerge numa confusão infinita é como uma coisa dessas pôde acontecer. Como um erro tão grosseiro pôde ser cometido por gênios do quilate dos inventores da informática contemporânea, homens que transformaram radicalmente nossa maneira de pensar, de trabalhar, de comunicar? Não eram homens de Neanderthal, com uma idéia imprecisa do passado e do futuro, mas homens de nosso tempo, que conheciam a história, que tinham aprendido que os séculos tinham o hábito de se sucederem um após o outro. Como não se deram conta, não digo há 2.000 anos, mas há menos de 30 anos (30 anos!), que seu software não funcionaria mais depois do ano 2000! Só há duas explicações possíveis.
A primeira é que sabiam perfeitamente o que faziam; só que a preocupação deles não era refletir sobre os problemas das pessoas às vésperas do ano 2000, mas vender um produto útil nos anos 1980; a memória dos computadores da época sendo mais limitada do que hoje, dois algarismos ocupando menos memória que quatro, eles então produziram o bug sem se preocupar com o futuro. (...)

Pergunta - Ninguém imaginava que essas máquinas dobrariam o cabo do terceiro milênio... Mas qual é a sua segunda explicação?
Eco -
Os informatas estavam de tal modo habituados a uma economia baseada na curta duração dos produtos que não pensavam que o que era vendido no início da década de 1980 estaria ainda em funcionamento em dezembro de 1999. Estavam de tal modo convencidos de que a renovação das máquinas se faria de dois em dois anos que não tiveram a bondade de resolver esse problema de calendário!
Mas, se de fato raciocinaram assim, cometeram um erro fatal. Esqueceram que todo o hardware e todo o software podem ser renovados, mas que a memória permanece sempre a mesma, quer se trate da data de Hiroshima ou do dia em que depositei cem francos em minha conta no banco. Desde a década de 1980 e até hoje um banco trocou de aparelhos e programas informáticos diversas vezes, mas cada novo programa teve de armazenar a memória precedente. Assim, desprezaram o fato de que a memória precedente estava marcada pelo sistema de codificação que eles tinham estabelecido na origem.

Pergunta - O sr. fala portanto de uma incapacidade de pensar o longo prazo. Não se poderá dizer que esta incapacidade sempre se verificou no passado?
Eco -
Certamente. A maior besteira da história não foi a de Napoleão quando vendeu a Louisiana para financiar a expedição à Rússia? Se ele não tivesse vendido a Louisiana, os Estados Unidos seriam um país francófono! A Louisiana era além disso a região mais culta -e depois, na época, não se limitava ao Estado da Louisiana atual, mas ocupava todo o curso do Mississippi. Mas, nessa história, pode-se apenas criticar a Napoleão por não ter previsto que os Estados Unidos iam se tornar o país mais poderoso do mundo. O problema do bug do milênio me parece de uma qualidade diferente. Torna-se o sintoma de uma relação difícil entre a memória, como tesouro do passado, e o futuro, como aquele pelo qual nos sentimos responsáveis. Se há um problema no limiar do ano 2000, ele diz respeito à perda da memória histórica.

Pergunta - Como o sr. pode falar de perda da memória no momento mesmo em que a Internet põe à nossa disposição uma espécie de memória total da humanidade, uma imensa biblioteca virtual.
Eco -
Eis então a ocasião de abordar o que defini como a crise atual da memória. Voltemos um instante à noção de progresso. Durante séculos tivemos a impressão de que nossa cultura se definia por uma acumulação ininterrupta de conhecimentos. Aprendemos o sistema solar de Ptolomeu, em seguida o de Galileu, depois o de Kepler etc. Mas isso é falso! A história das civilizações é uma sucessão de abismos onde toneladas de conhecimentos desaparecem!
Já os gregos foram incapazes de recuperar os conhecimentos matemáticos dos egípcios, o que causou o florescimento dos ocultismos que se fundamentam na idéia da recuperação de antigos saberes perdidos. Em seguida a Idade Média perdeu toda a ciência grega, todo o Platão menos um diálogo, e a metade de Aristóteles... Poderíamos continuar enumerando por muito tempo. Perceberíamos que em cada época, no decurso das eras, deixamos que se perdesse uma parte dos conhecimentos.

Pergunta - Está sugerindo que nós nos contentamos com redescobrir o que tinha sido esquecido.
Eco -
Não, muito pelo contrário! Se bem que às vezes se possa recuperar certos fragmentos do saber perdido, a gente é o mais das vezes impotente. O que eu digo é que a memória social e cultural tem por função filtrar, e não apenas conservar. Às vezes aprovamos essas filtragens (não ficamos desolados por termos perdido as matemáticas mesopotâmicas, se é que existiram, salvo quando somos historiadores das ciências) e às vezes as consideramos como censuras, quer sejam obra da Inquisição, dos stalinistas ou dos sectários do politicamente correto americano, que procuram eliminar dos manuais de história tudo o que pode aparecer como um atentado a essa ou aquela minoria racial por exemplo. Em todo caso, a função da memória, seja individual ou coletiva, não é somente reter, mas também filtrar.

Pergunta - A cultura é então feita de memória, mas também de esquecimento...
Eco -
Trata-se de uma dialética muito delicada, de um equilíbrio difícil. Comecemos pela memória. Não há sobrevivência sem memória. Se lhe aplicassem um golpe forte na cabeça e as áreas do cérebro que presidem à sua memória fossem prejudicadas, você não teria mais identidade. As sociedades sempre contaram com a conservação da memória pelas mesmas razões. A começar pelo ancião da tribo que à noite, debaixo de uma árvore, contava os feitos dos seus antepassados. Transmitia essas lendas às jovens gerações, e era assim que o grupo mantinha sua identidade.
Cada civilização encontra sua identidade quando um grande poeta compõe seu mito fundador. E quando, numa sociedade, uma censura qualquer apaga uma parte da memória, a sociedade conhece uma crise de identidade. Do mesmo modo, repito, quando por um excesso dos adeptos do politicamente correto se elimina dos manuais de história a viagem de Cristóvão Colombo porque falar de "descobrimento da América" seria dirigir insultos aos autóctones, a memória se acha amputada, alienada. A memória deve ser respeitada, mesmo quando é cruel.

Pergunta - Mas o sr. disse que a memória era a arte de conjugar a recordação e o esquecimento...
Eco -
Sim. Recordar é selecionar. Se me lembrasse de tudo o que se passou ontem, eu seria como Funes, de Borges...

Pergunta - ... que se lembrava de cada folha de cada uma das árvores que viu em sua vida, de cada letra de cada frase de todos os livros que leu...
Eco -
... estaria perdido. Funes, você se lembra, não pode nem agir nem sequer se mexer... O que caracteriza a transmissão da memória é a filtragem. E, com a filtragem, a generalização. Acabo de voltar de uma viagem a Istambul, guardo em minha memória várias lembranças. Mas, se tentasse contar tudo o que me aconteceu durante essa viagem, verificaria que já esqueci a metade. Deixei esvaecer-se, e felizmente, tudo o que não me parecia digno de atenção. E generalizei, fiz abstrações. Conservo na memória detalhes, muito precisos, mas também impressões vagas. (...)

Pergunta - E é nisso que residia a doença de Funes: ele não podia eliminar nada.
Eco -
Paremos aqui, porque a Internet, ou a World Wide Web, já é (ou será em breve) um imenso Funes. Até o presente a sociedade filtrava para nós, por intermédio dos manuais e das enciclopédias. Com a Web, todo o saber, toda a informação possível, mesmo a menos pertinente, está lá, a nossa disposição. Então pergunta-se: quem filtra? (...) Ampliamos nossa capacidade de estocagem da memória, mas não encontramos ainda o novo parâmetro de filtragem.

Pergunta - O sr. é partidário de uma reabilitação do esquecimento?
Eco -
Numa certa medida, sim, mas você tocou num ponto delicado. Escrevi há algum tempo um pequeno ensaio meio brincalhão, meio sério (evoco também esse problema em "O Pêndulo de Foucault") sobre a possibilidade de pôr em prática uma "ars oblivionalis", uma arte do esquecimento. Percebeu-se muito cedo que era impossível inventar uma técnica para esquecer, porque é impossível esquecer voluntariamente. Há mesmo nas artes mnemotécnicas do Renascimento, na "Plutosophia" de Gesualdo, um capítulo sobre os meios de esquecer que é inteiramente risível.
Em geral o esquecimento é acidental e involuntário. Pode ser favorecido pelo excesso de informação. Se, no decorrer de uma recepção, você é apresentado a 50 pessoas, não tardará a esquecer seus nomes. Isso significa que o esquecimento está muito ligado ao acaso, que não pode ser programado. Se quero me lembrar do seu nome, começo por repeti-lo para mim mesmo várias vezes, e isso funcionará talvez. Mas, se quero esquecê-lo e repito intensamente que quero, estou seguro de que vou me lembrar dele. Moral da história: diante da Web você não dispõe nem de regra para selecionar a informação, nem de regra para esquecer o que não merece ser conservado. Só dispõe de certos critérios de seleção na medida em que está intelectualmente preparado para enfrentar a prova de surfar na Web. (...)

Pergunta - Sua posição não incita a tratar com indulgência uma certa censura ideológica, seja ela religiosa ou política?
Eco -
Pessoalmente não aprovo esse tipo de censura. Mas permita-me explicar que, na ausência de um partido ou de uma igreja muito fortes, as pessoas recorrem às seitas para encontrar uma autoridade que se encarrega de filtrar as informações para elas. A liberdade de escolha entre uma multiplicidade de informações é positiva para os ricos (digo ricos do ponto de vista intelectual, aqueles que são capazes de discriminação crítica), mas não para os pobres. Parte-se para uma nova divisão de classes, não mais fundada no dinheiro, mas na capacidade de exercer seu espírito crítico e selecionar a informação.

Pergunta - Que soluções o sr. preconiza diante dessa globalização da memória?
Eco -
Uma certa aprendizagem da seleção poderia constituir um primeiro elemento de resposta. Uma disciplina completamente nova, por inventar. Prevejo, entretanto, uma situação desconfortável para a qual devemos nos preparar. Diante de uma informação total, à la Funes, cada um faz sua escolha. Antes se sabia que existiam escolhas privilegiadas, digamos a escolha marxista, a escolha reacionária etc. Podia-se prever de que maneira a informação seria selecionada conforme o texto de referência fosse a Bíblia, a "Encyclopédie", de Diderot, "O Capital", o "Cours de Linguistique Générale"...
No presente cada um faz sua escolha de maneira totalmente inédita e imprevisível. Cinco bilhões de pessoas no planeta, cinco bilhões de filtragens ideológicas. O resultado corre o risco de ser uma sociedade composta de identidades individuais justapostas (o que me parece um perigo). Não sei se uma sociedade como essa teria chances de funcionar. Parece-me que um pouco de gregarismo é necessário...


Tradução de José Laurenio de Melo.

São Paulo, Domingo, 08 de Agosto de 1999

PARA COMPREENDER A "VIDA DURA"


Pesquisas recentes confirmam que existe um fundamento físico para determinadas depressões

por Isaias Pessotti

Depressão significa, literalmente, variação quantitativa para baixo, uma redução de nível. Nível do terreno, da água no reservatório, da frequência com que alguém procura outras pessoas, ou se dedica a atividades produtivas ou criativas, ou a novos relacionamentos afetivos. O significado clínico original de "depressio" era abatimento, retraimento: condições que compõem o padrão de tristeza. Na psicopatologia mais antiga, desde Hipócrates, no século 5 a.C., essas condições, quando duradouras e acompanhadas por delírios tristes ou pessimistas, podiam ser sintoma de uma doença humoral; a loucura triste, a melancolia, produto da "meláina kolé", a bílis negra, a "atra bilis". Assim, a depressão jamais foi uma doença: era um sintoma, eventual, da melancolia. O tratamento prescrevia, além de dietas, poções ou fármacos que corrigissem o desarranjo humoral, práticas outras que configuravam uma primitiva psicoterapia. Celsus (42 a.C.- 37 d.C.) prescreve: "É preciso afastar do doente todas as causas de medo. Deve-se procurar distraí-lo com contos e jogos que mais lhe agradavam no estado de saúde. As suas obras, se as realizar, devem ser elogiadas com afabilidade e deixadas perto dele. Suas tristes fantasias serão combatidas com suaves admoestações, fazendo-lhe perceber que, nas coisas que o atormentam, ele deve achar motivos de encorajamento e não de inquietação". Ao lado do tratamento físico (farmacológico), note-se, emprega-se uma psicoterapia de reengajamento nos comportamentos deprimidos. E Sorano de Éfeso [médico romano, c. 98-138" admite que sintomas da melancolia podem ser a prostração (depressão do vigor físico), tristeza, má disposição diante dos parentes, além de idéias persecutórias, prantos sem motivo etc. Depressão é, pois, mero sintoma, entre outros. O tratamento inclui cataplasmas relaxantes sobre o epigastro (para relaxar as fibras nervosas e outras), assistir a comédias, escrever discursos (que devem ser elogiados com entusiasmo). Os iletrados devem ser motivados a exercer seus ofícios, com efusiva aprovação dos familiares. Os músicos devem ser encorajados a tocar seus instrumentos preferidos. Como se vê, além do tratamento físico, também Sorano adota alguma psicoterapia, que restaure a auto-estima e o engajamento em atividades criativas. Mas a depressão, enquanto tristeza, abatimento ou retraimento, não tem nenhum significado clínico se não for acompanhada de "imagens fantásticas", como afirma Galeno (séc 1º d.C.). Só nesse caso ela será sintoma de melancolia.

A dura realidade
Desde Plater (1625) até o "Traité" de Pinel (1801) [Philippe Pinel (1745-1826), "Traité Médico-Philosophique sur l'Aliénation Mentale, ou la Manie"", sem algum tipo de pensamento delirante não há mania (loucura exaltada, com certa hiperatividade física e mental) nem melancolia (loucura deprimida, com abatimento ou tristeza). Mais ainda, essas doenças podem agora ter origem puramente afetiva, passional. Podem resultar das condições adversas da vida afetiva, do confronto inevitável da "dura realidade". Será essa a concepção da melancolia, para os principais autores oitocentistas, depois de Pinel. Como Esquirol, Heinroth, em 1818, especifica o conceito, com o nome de "astenia", o equivalente grego da "depressio" latina: a astenia pode ser "depressão do sentimento e da imaginação, com concentração triste em si mesmo", ou "depressão da faculdade de pensar e/ou perda de noções", ou, ainda, "depressão eletiva da vontade, incapacidade de determinação a agir". Embora sintoma, a depressão agora pode se referir a atividades mentais (cognitivas e afetivas). Chama a atenção nessa trajetória do conceito de depressão-melancolia a mudança na indagação etiológica: na Antiguidade a causa era física, algum desarranjo humoral (hoje se diria bioquímico); desde Pinel, os contratempos afetivos (passionais) também podem causar a melancolia (ou a mania). Mas as alterações nas funções mentais, causadas por conflitos ou frustrações afetivas, são em última análise processos ocorridos no organismo. Qual é a estrutura cerebral afetada ou o tipo de disfunção cerebral específicos para os casos de mania ou de melancolia (astenia)? As laboriosas pesquisas anatomopatológicas levavam a resultados inconclusivos. Então, talvez, a mania, a melancolia e outros quadros clínicos não fossem doenças reais, mas artificiais, meras manifestações, distintas, mas resultantes de algum fundo doentio, mais genérico -que seria a verdadeira doença, natural. Subjacente às já clássicas mania e melancolia, agora doenças aparentes, simples expressões, sintomáticas, de alguma constituição orgânica geral, predisponente. A definição desse "fundo doentio predisponente" foi o grande desafio da psicopatologia desde Morel (1860) e Falret (1860). Trata-se de uma condição constitucional, eventualmente hereditária, que explicaria por que os contratempos afetivos ou distúrbios encefálicos só resultam em mania ou em melancolia em algumas pessoas, e não em outras. Ou por que algumas depressões (retraimento, desengajamento social ou afetivo) resultam em melancolia para algumas pessoas e são meros episódios normais, de uma "vida dura", para outras, Kraepelin, em 1915, classifica as patologias depressivas como "estados constitucionais depressivos" e, com isso, permite falar em depressão "constitucional", isto é, resultante de uma predisposição orgânica. É o fundamento da idéia de que há depressões endógenas, independentes das experiências da vida social ou afetiva. Uma idéia que encontra eco em pesquisas recentes. Obviamente, para uma depressão patológica, causada seguramente por alguma disfunção na bioquímica neuronal, a terapia ideal e eficaz pode ser algum fármaco que corrija tais disfunções. Mas a clínica mostra que essas depressões "endógenas" não são tão frequentes como as depressões outras, resultantes das dificuldades afetivas ou sociais, casos em que o fármaco pode ser ineficaz, inútil. Isso se, além do alívio do sofrimento (episódico), se pretende uma real cura. O vago conceito de "fundo orgânico predisponente", eventual gerador dos estados depressivos "constitucionais" e de outras patologias, passa por uma reformulação fecunda a partir da obra de Bleuler (1908). Nela ele perde o fatalismo que lhe atribuíram Morel e, até certo ponto, Kraepelin, depois de Krafft-Ebing. Bleuler não rejeita a existência de fatores predisponentes orgânicos (fisiológicos, bioquímicos ou endócrinos, por exemplo). Mas afirma que a ação deles não é absoluta, é mediada por processos psicodinâmicos subjacentes. As formas maniacais, histéricas ou depressivas (melancólicas) são, sim, manifestações de processos doentios mais amplos, mas processos de natureza pessoal, nos quais as condições orgânicas de base devem interagir com resistências da pessoa, singular. Resistências mais fortes ou mais fracas. Para Bleuler, então, as diversas depressões são apenas manifestações não de uma determinação orgânica inexorável, mas de uma certa "personalidade", isto é, são resultados de uma interação única entre um repertório ou uma história pessoal de sentimentos e motivações com condições constitucionais puramente orgânicas.

Cultura depressiva
É nessa concepção etiológica que se fundam duas idéias atuais: uma, a de que as condições socioeconômicas ou os modelos educacionais podem fortalecer ou enfraquecer a "personalidade" (incluindo auto-estima, valores pessoais, história afetiva etc.) e, desse modo, aumentar ou reduzir as "resistências da pessoa" às contingências traumáticas ou desestabilizantes da vida cotidiana; outra, a de que a psicoterapia (formal ou não), apenas ela, pode fortalecer preventivamente ou restaurar essas resistências.
Vivemos hoje numa cultura cada vez mais depressiva, como adverte Roudinesco [Elisabeth Roudinesco, historiadora e psicanalista francesa". Mais depressiva não só porque o cotidiano é penoso, repleto de frustrações, fracassos e decepções desanimadoras, mas, principalmente, porque gera "personalidades" frágeis, pouco resistentes à frustração, à perda, ao fracasso, à incompreensão do outro. E, por isso, mais susceptíveis à desestabilização diante das agruras normais da vida ou diante de alguma hipotética predisposição orgânica.
Quando a depressão não é claramente endógena e, portanto, tratável com fármacos, é da psicoterapia que se pode esperar alguma cura ou prevenção. O fármaco pode aliviar o sofrimento, como o álcool pode fazer esquecer a perda de um afeto, mas o álcool não traz de volta o amor perdido, nem o remédio traz a restauração da auto-estima, a reavaliação de seus afetos, a redefinição de seus valores. Ou, em resumo, a recuperação da própria significação no mundo.
Uma tarefa gigantesca, a da psicoterapia, nestes tempos em que tudo parece conspirar para sufocar a "pessoa" e anular a subjetividade. Seja banalizando o sentimento e os valores pessoais, já que cada um vale menos pelo que sente ou sabe, do que pelo que consome (prestígio, posses, sucesso social) e pelo que produz (produtividade, "profissionalismo", competitividade).
Não espanta, pois, que se fale em epidemia de depressão. O que há, na verdade, é uma sociedade depressiva e uma epidemia de diagnósticos de depressão. Há uma situação de "vida dura" que implica frequentes frustrações, fracassos, decepções e na qual a subjetividade de alguns resiste mais que a de outros: alguns são mais resistentes aos contratempos da vida, embora também sofram. Mas estão mais prontos para o sofrimento, talvez porque sejam mais confiantes em suas possibilidades, mais firmes em seus valores ou, simplesmente, mais resignados (e, portanto, mais fortes). Em resumo, têm uma sólida subjetividade. Ou, noutros termos, um "eu" mais sólido.
Há uma epidemia de diagnósticos. Explico: primeiro, porque tais diagnósticos, via de regra, são baseados num quadro de sintomas pré-catalogados por algum manual. São diversos, e suas combinações são várias. Assim, muitas pessoas se "encaixam" no diagnóstico de depressão, quando se prescinde das demoradas indagações etiológicas da psiquiatria tradicional ("time is money", também para o paciente); segundo, porque o decurso da doença "per se" (ou transtorno, ou distúrbio) cada vez interessa menos do que a eventual remissão dos sintomas. À medida que o quadro sintomático passa a "ser" a doença, a cura será a remissão dos sintomas. Então, o diagnóstico favorece a prescrição do fármaco que os abole. A resistência pessoal ao sofrimento e aos infortúnios da vida permanecerá intocada.
Graças aos meios de comunicação de massa, à farta propaganda da indústria farmacêutica, à difusão do DSM, manual de quadros diagnósticos oficial, com mais de mil quadros psiquiátricos, a vida se psiquiatrizou. "Depressão" e, mais recentemente, "síndrome do pânico" fazem parte da linguagem cotidiana em numerosos grupos sociais. E são já popularmente empregadas como "diagnósticos" por ampla variedade de pessoas. Ao ponto de "depressão" ter-se tornado sinônimo de desânimo, tristeza, decepção, frustração etc. São estados normais do que antes se designava "vida dura".
Encontrar um nome para a ameaça ou o sofrimento é uma forma de reduzir a ansiedade. Um diagnóstico médico de depressão reduz a ansiedade do paciente, dá um nome ao seu fantasma. E lhe permite abrir mão de ulteriores indagações sobre si mesmo, nem sempre agradáveis. Ser rotulado, assim como rotular, é cômodo. E, diante da influência higienista da "mídia", a apregoar a necessidade de estar sempre sadio, hígido, de corpo e de mente, qualquer sensação de anormalidade pode parecer sintoma de doença, de estar anormal, necessitando de tratamento. Como se normalidade não incluísse perdas e sofrimentos, desafios e impotências, mas fosse um estado de anestesia permanente. Há caminhos para esse hedonismo higiênico: a dependência de fármaco ou, talvez, certas formas de esquizofrenia. São caminhos para abdicar da (dura) afirmação da própria subjetividade e se tornar mero objeto. Imune ao sofrimento, às escolhas, aos riscos do viver. Às depressões da vida.


Isaias Pessotti é escritor e ex-professor titular de psicologia da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto (SP). É autor de "Os Nomes da Loucura" e "O Século dos Manicômios" (ed. 34), entre outros.

São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

UMA EXISTÊNCIA SEM SUJEITO

Soluções psiquiátricas para a depressão, doença analisada em "O Demônio do Meio-Dia", levam pouco em conta o consumismo e a competitividade das sociedades atuais

por Maria Rita Kehl

A depressão é uma forma muito particular e avassaladora daquilo que corriqueiramente chamamos a dor de viver. Juntamente com a angústia e a dor propriamente dita, é uma constelação de afetos tão familiar que, como escreve Daniel Delouia, dificilmente conseguimos classificá-la entre os quadros clínicos da psicopatologia. À dor do tempo que corre arrastando consigo tudo o que o homem constrói, ao desamparo diante da voragem da vida que conduz à morte -que, para o homem moderno, representa o fim de tudo-, a depressão contrapõe um outro tempo, já morto: um "tempo que não passa", na expressão de J. Pontalis.
O psiquismo, acontecimento que acompanha toda a vida humana sem se localizar em nenhum lugar do corpo vivo, é o que se ergue contra um fundo vazio que poderíamos chamar, metaforicamente, de um núcleo de depressão. O núcleo de nada onde o sujeito tenta instalar, fantasmaticamente, o objeto perdido -objeto que, paradoxalmente, nunca existiu.
A rigor, a vida não faz sentido e nossa passagem por aqui não tem nenhuma importância. A rigor, o eu que nos sustenta é uma construção fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo. A rigor, ninguém se importa tanto com nossas eventuais desgraças a ponto de conseguir nos salvar delas. Contra esse pano de fundo de "nonsense", solidão e desamparo, o psiquismo se constitui em um trabalho permanente de estabelecimento de laços -"destinos pulsionais", como se diz em psicanálise- que sustentam o sujeito perante o outro e diante de si mesmo.
Freudianamente falando, a subjetividade é um canteiro de ilusões. Amamos: a vida, os outros e sobretudo a nós mesmos. Estamos condenados a amar, pois com essa multiplicidade de laços libidinais tecemos uma rede de sentido para a existência. As diversas modalidades de ilusões amorosas, edipianas ou não, são responsáveis pela confiança imaginária que depositamos no destino, na importância que temos para os outros, no significado de nossos atos corriqueiros. Não precisamos pensar nisso o tempo todo; é preciso estar inconsciente de uma ilusão para que ela nos sustente.
A depressão é o rompimento dessa rede de sentido e amparo: momento em que o psiquismo falha em sua atividade ilusionista e deixa entrever o vazio que nos cerca ou o vazio que o trabalho psíquico tenta cercar. É o momento de um enfrentamento insuportável com a verdade. Algumas pessoas conseguem evitá-lo a vida toda. Outras passam por ele em circunstâncias traumáticas e saem do outro lado. Mas há os que não conhecem outro modo de existir; são órfãos da proteção imaginária do "amor", trapezistas que oscilam no ar sem nenhuma rede protetora embaixo deles. "A depressão é uma imperfeição do amor", escreve Andrew Solomon, autor de "O Demônio do Meio-Dia", vasto tratado sobre a depressão publicado nos EUA e traduzido no Brasil no final de 2002 [ed. Objetiva". Faz sentido, se considerarmos o sentido mais amplo da palavra amor.

Vida e dor
Durante cinco anos Solomon dedicou-se a pesquisar a depressão: causas e efeitos, tratamentos, hipóteses bioquímicas, estatísticas. Recolheu histórias de vida de dezenas de pessoas que passaram por crises depressivas -"nunca escrevi sobre um assunto a respeito do qual tantos tivessem tanto a dizer". A estas, acrescentou sua própria história -o trabalho no livro foi uma forma de reação ao longo período em que ele próprio passou por sérias crises depressivas. Um período em que, nas palavras do autor, "cada segundo de vida me feria". A julgar pelos números recolhidos por Solomon em relatórios da divisão de saúde mental da Organização Mundial de Saúde -o DSM-4-, esta ferida acomete um número cada vez maior de pessoas no mundo, particularmente nos Estados Unidos. Três por cento da população norte-americana sofre de depressão crônica -cerca de 19 milhões de pessoas, das quais 2 milhões são crianças. A depressão é a principal causa de incapacitação em pessoas acima de cinco anos de idade. Quinze por cento das pessoas deprimidas cometerão suicídio. Os suicídios entre jovens e crianças de 10 a 14 anos aumentaram 120% entre 1980 e 1990. No ano de 1995, mais jovens norte-americanos morreram por suicídio do que da soma de câncer, Aids, pneumonia, derrame, doenças congênitas e doenças cardíacas. Essa forma de mal-estar tende a aumentar, na proporção direta da oferta de tratamentos medicamentosos: há 20 anos, 1,5% da população dos EUA sofria de depressões que exigiam tratamento. Hoje esse número subiu para 5%. Sincero adepto dos tratamentos farmacológicos, que, segundo ele, salvaram sua vida, Andrew Solomon acaba por se perguntar se a doença cresce com o desenvolvimento da medicina ou se a indústria farmacêutica produz as doenças para os remédios que desenvolve, do mesmo modo que outros ramos industriais criam mercados para seus produtos.

Insight sem inconsciente?
A contribuição das terapias medicamentosas no tratamento das doenças mentais é inegável, e o analista, assim como outros "terapeutas da fala", no dizer de Solomon, não podem dispensá-la. "O Prozac não deveria tornar o insight dispensável", diz Robert Klitzman, da Universidade Columbia, citado pelo autor. "Deveria torná-lo possível." Mas qual o insight possível, capaz de produzir efeitos sobre a subjetividade, em uma cultura em que as práticas de linguagem se impõem fortemente de modo a apagar o sujeito do inconsciente? As histórias de pacientes depressivos enumeradas por Andrew Solomon centram-se ao redor da perspectiva única do vitimismo. As pessoas se deprimem porque não suportam o que foi feito a elas. Acidentes, perdas traumáticas, abandonos, violência, abuso sexual na infância; é de fora para dentro que a vida psíquica se impõe àqueles que sofrem de mal-estar. É óbvio que a rede de proteção do psiquismo pode ser rompida pelas irrupções traumáticas do real; mas as "desgraças da vida" recaem sempre sobre um sujeito, incidem sobre uma posição desejante e são rearticuladas pelas formações do inconsciente, que são formações da linguagem. Do ponto de vista do vitimismo, a cura da depressão consiste na eliminação de todo traço de "má notícia" que advenha do inconsciente. A psiquiatria e a indústria farmacêutica aliam-se a esse ponto de vista. "Assistimos a um conluio curioso entre a descrição psiquiátrica e a própria queixa do deprimido", escreve Delouia. "A ignorância a respeito do psíquico une o fenômeno depressivo com a parafernália nosográfica da psiquiatria."

Tempo de serviço
O autor não deixa de ser crítico em relação a esta perspectiva. "Nós patologizamos o curável. Quando existir uma droga contra a violência, ela será encarada como uma doença." Também é crítico em relação ao ideal de remoção química de toda a dor de existir. No entanto, a ingenuidade a respeito da realidade psíquica prevalece até mesmo em relação à sua própria crise depressiva. Filho de uma mulher ativa e absorvente, que mais tarde ele próprio pôde perceber como depressiva, Andrew Solomon participou, com o pai e o irmão, do suicídio assistido da mãe, vítima de câncer no ovário aos 58 anos. Depois dessa morte, dramática e intensamente estetizada, a fantasia de suicídio ocorre aos outros membros da família. No ano seguinte, Solomon inicia uma análise com uma mulher que lhe lembra a mãe e propõe a ela um pacto incondicional: não abandonarão o tratamento até o "fim", sob nenhuma condição. Mas alguns anos depois a analista anuncia ao dedicado analisando que vai deixar o trabalho. Aposentadoria por tempo de serviço... No tempo de análise que lhe resta, Andrew Solomon não entende por que vai entrando em depressão cada vez mais grave, até que a própria analista concorda em que ele busque auxílio psiquiátrico. A análise "termina" pouco depois, e ele atravessa um ciclo de depressões gravíssimas. A inabilidade da analista de Solomon quanto ao manejo da transferência diante de um quadro de luto melancólico salta aos olhos do leitor familiarizado com a psicanálise. Não é sem razão que ele escreve, anos mais tarde, que a psicanálise seja "hábil para explicar, mas não eficiente para mudar" os quadros depressivos. A julgar pelo relato de Solomon, seu tratamento psicanalítico foi baseado na reconstituição da vida infantil, em busca de uma causalidade psíquica que, de fato, pode ter valor explicativo, mas não produz nenhuma intervenção sobre o psiquismo vivo e ativo no sujeito adulto. Pierre Fédida, em seu livro sobre a depressão, adverte sobre os riscos de se buscar a evocação de um "acontecimento real que se supõe empiricamente traumático: a vivência infantil -essencialmente inatual na fala associativa- recebe assim uma positividade patogênica, na forma de uma atualidade passada". O "infantil" que interessa à psicanálise não é o do passado, rememorado pelo eu, mas o que se manifesta ao vivo na transferência, nas demandas dirigidas ao analista. Como a analista de Solomon não se deu conta da relação entre a proposta de uma análise incondicional feita por ele, o amor pela mãe e o pacto de morte que o uniu a ela? Como não se deu conta da relação entre a crise depressiva de seu analisante e o anúncio burocrático de sua "aposentadoria"?

Epidemia
O livro de Solomon não oferece nenhuma contribuição decisiva para o conhecimento da depressão, mas lança uma luz importante sobre as relações entre a emergência epidêmica dessa forma de mal-estar e os modos de subjetivação predominantes na cultura norte-americana. Em uma sociedade em que as formações discursivas apagam o sujeito do inconsciente, em que a felicidade e o sucesso são imperativos superegóicos, a depressão emerge -como a histeria na sociedade vitoriana- como sintoma do mal-estar produzido e oculto pelos laços sociais. O vazio depressivo, que em muitas circunstâncias pode ser compensado pelo trabalho psíquico, é agravado em função do empobrecimento da subjetividade, característico das sociedades consumistas e altamente competitivas.
A "vida sem sentido" de que se queixam os depressivos só pode ser compensada pela riqueza do trabalho subjetivo, ao preço de que o sujeito suporte, amparado simbolicamente pelo analista, seu mal-estar. A eliminação farmacológica de todas as formas de mal-estar produz também, paradoxalmente, o apagamento dos recursos de que dispomos para dar sentido à vida.


Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras), entre outros.

São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

A MORAL DA MEMÓRIA

Modos opostos e complementares de representação do Holocausto em filmes como "Shoah" ou no recente "O Declínio" escancaram a contradição entre as maneiras "certa" ou "errada" de mostrar a história

A moral da memória

JACQUES RANCIÈRE
COLUNISTA DA FOLHA

Sexagésimo aniversário da entrada das tropas aliadas em Auschwitz [em 27 de janeiro], lançamento do filme "O Declínio" ["Der Untergang", 2004, de Oliver Hirschbiegel], que conta os últimos dias de Adolf Hitler [1889-1945] em seu "bunker" -a atualidade da história e do cinema faz novamente uma pergunta lancinante: o que se deve ou não se deve mostrar da grande empreitada nazista e de sua concretização, o extermínio dos judeus da Europa?
Esse problema evidentemente contém dois. O primeiro é o da ficção histórica em geral: como conciliar os requisitos da ficção com os da história? Antes da era das revoluções modernas, simplesmente não se fazia essa pergunta: os historiadores contavam os grandes fatos dos príncipes e dos generais; a grande poesia narrava os pensamentos, sentimentos e atos dos personagens situados acima do comum. Mas nos últimos dois séculos as cartas do fictício e do histórico foram embaralhadas, assim como as do grande e do pequeno. A ficção decretou a igualdade de todos diante de sua lei, a história viu-se dividida entre as decisões dos Estados e a vida lenta e obscura das multidões.
A ficção histórica tornou-se o entrelaçamento de duas lógicas. Ela nos mostra os grandes fatos da história por meio do olhar das pessoas comuns e da convulsão das vidas privadas. Assim, "O Declínio" é construído a partir de um livro de um historiador sobre os últimos dias de Hitler e do testemunho de uma ex-secretária do Führer.
[O cineasta alemão] Wim Wenders [1945] criticou vivamente o diretor [em texto publicado no Mais! em 12/12/2004] por essa mistura que permite ao autor eximir-se de um ponto de vista próprio. Mas ele poderia ter feito a mesma censura a [Victor] Hugo [1802-85] ou a [Leon] Tolstói [1828-1910]: "Os Miseráveis" assim como "Guerra e Paz" são construídos sobre essa oscilação de que Tolstói fez teoria e cuja fórmula foi retomada por inúmeros romancistas ou cineastas.

A forma do inaceitável
A crítica, portanto, não tem nenhuma importância em si. Ela encobre na verdade um problema muito diferente. Ao misturar as verossimilhanças da ficção com a familiaridade das personagens encarnadas, os feitos dos homens célebres são trazidos para perto de nós, relacionados a corpos aos quais somos sensíveis, a sistemas de explicação que os justificam. A ficção deve ser aceita, e pode sê-lo sem tornar aceitável o que ela mostra -no caso, a loucura assassina de um sistema? Pedir que o autor tenha um ponto de vista próprio é pedir-lhe para contrariar essa lógica natural da ficção, para introduzir o inaceitável no aceitável.
Que forma esse inaceitável deve tomar? "O Declínio" não pára de nos fazer escutar o propósito monstruoso de Hitler ou de seus seguidores e de nos mostrar espetáculos insuportáveis: corpos mutilados, cérebros explodidos com um revólver, cerimonial glacial da senhora Goebbels envenenando seus seis filhos um após outro. Mas os propósitos monstruosos são os de um homem desgastado, encerrado em seu "bunker" e em seu delírio, semelhante a um desses reis loucos que o teatro nos mostra. A monstruosa meticulosidade da senhora Goebbels desperta lembranças de antigos heróis subtraindo da servidão a si mesmos e suas famílias. Todos esses corpos ensangüentados pertencem a um povo de vencidos, e sempre há comiseração pelos vencidos.
Se o cotidiano comum do "bunker" trata o crime nazista por meio da banalização, o caráter extraordinário das palavras e dos atos monstruosos o faz cair no terror trágico.
Poderíamos dizer que o caso é problemático desde o início: o que é representado é a derrota do nazismo. Mas o que deve ser julgado não é sua derrota, e sim suas "vitórias" anteriores, a ordem monstruosa que ele havia instaurado. O que falta nesse filme são suas verdadeiras vítimas: não os generais que estouram os próprios cérebros, mas primeiramente os 6 milhões de mortos nos campos de extermínio.
Infelizmente, o mesmo problema se coloca por esse lado. E a escolha dos filmes apresentados pelas televisões para comemorar Auschwitz pôs em cena novamente a questão de como mostrar os campos.
Evidentemente não com imagens reais: estas são ausentes pela própria lógica do processo, que apagou seus vestígios. Então pela ficção, à maneira de "Holocausto" [série de quatro episódios exibida na TV americana em 1978 e assistida por mais de 120 milhões de pessoas em todo o mundo], isto é, por meio do destino de alguns indivíduos envolvidos no processo, do lado dos carrascos ou das vítimas?
Mas nossa empatia pelo destino trágico da família Weiss é igualmente suspeito: compartilhar a infelicidade de uma família sofredora não é esquecer o que essa família deveria encarnar, o destino dado a um povo inteiro? A comiseração que experimentamos por aqueles que vão entrar na câmara de gás e até nossa identificação com os combatentes do gueto não têm um efeito contrário? Elas tornam presentes aqueles cuja existência, e mesmo seus vestígios, o plano nazista pretendia suprimir. Elas nos impedem, portanto, de considerar friamente a monstruosidade do plano global de extermínio de uma coletividade e o silêncio em que esse processo se efetuou.
O segundo problema, portanto, seria formulado assim: como dar forma fictícia ao crime excepcional do extermínio? À banalização sentimental de "Holocausto" é comum se contrapor o rigor de "Shoah" [1985]. O filme de Claude Lanzmann realmente recusa ao mesmo tempo qualquer imagem histórica e qualquer ficcionalização da história. Ele quer que o passado esteja presente somente por meio da palavra dos sobreviventes, confrontada com o silêncio dos locais de extermínio. Ele pretende, assim, evitar duas formas de banalização: a da ficção que apaga o extermínio, tornando presentes os corpos e a do documento histórico que encontra razões para ele, remetendo a um encadeamento mais amplo e, finalmente, interminável de causas e efeitos.
A boa representação do extermínio seria, assim, a que separa o horror do crime de qualquer imagem que o aproxime de nossa sensibilidade, de qualquer explicação que lhe dê uma razão aceitável para nossa inteligência. Seria a representação do irrepresentável. Mas imediatamente se coloca a pergunta: então, essa boa representação é boa para quê? A resposta está certamente pronta na forma de uma fórmula repetida: os que ignoram seu passado estão condenados a revivê-lo. Portanto, dizemos, é preciso observar o "dever de memória" e olhar bem para o passado para evitar que ele se repita. Mas o que entendemos por isso, exatamente?


A boa representa-ção não tem um efeito mais garantido que a má


A fórmula pode querer dizer duas coisas: é preciso mostrar o horror em sua realidade sensível para provocar a sensação de insuportável que leva a recusar as idéias que engendraram o horror; ou é preciso mostrar como essas próprias idéias foram engendradas para que o conhecimento do processo provoque o conhecimento dos meios para impedir que ele se reproduza.
Mas o purismo da boa representação torna ambas as deduções caducas. Colocar em imagens corpos que sofrem o intolerável é oferecê-los à comiseração sentimental ou ao voyeurismo perverso. Dar razões para o extermínio é conferir-lhe uma justificativa. O horror do extermínio deve ser deixado sem outra causa além da monstruosidade de seu próprio projeto. Mas então não se deve esperar nenhum efeito do conhecimento do passado para evitar que ele se reproduza. A política da memória se contradiz. E a boa representação não tem um efeito mais garantido que a má.

Normas de aceitabilidade
Aí está o fundo da coisa. A comparação entre as boas e as más maneiras de representar a história confunde dois problemas. De um lado, define normas de aceitabilidade. Ela quer, por exemplo, que evitemos representações que transformam os criminosos em homens iguais aos outros. Ela supõe que seremos menos sensíveis à barbárie hitlerista se virmos o ditador enternecido por seu cão ou afetuoso com sua secretária. Mas ela também quer que essas normas de aceitabilidade sejam princípios de utilidade.
Ora, como a representação de um Hitler batendo em seu cão ou em sua secretária seria mais útil à causa do combate ao nazismo? E como a representação do extermínio como mecânica desencarnada é mais adequada para alimentar o ódio ao anti-semitismo do que a representação dos sofrimentos das vítimas ou do estado de espírito dos carrascos?
Podemos sempre estabelecer critérios para dizer que "Shoah" é mais adequado que "Holocausto" para traduzir a monstruosidade do genocídio e respeitar a memória de suas vítimas. Outra coisa é deduzir disso sua capacidade de proibir no futuro formas equivalentes de monstruosidade. Entre a boa maneira de falar do horror passado e a maneira útil de evitar o horror no futuro, não há nenhuma ligação necessária. O pensamento edificante que quer utilizar o conhecimento do passado para garantir o futuro talvez tenha ficado no tempo dos príncipes e dos preceptores que lhes ensinavam os exemplos a ser imitados para ganhar batalhas e governar povos.
Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

"Ser moderno no século 21 é olhar para o passado"

Crítico e curador francês Nicolas Bourriaud fala à Folha sobre o conceito de "como viver junto", tema da Bienal de SP

Teórico vê na exposição em SP conceitos semelhantes aos da Bienal de Lyon e diz que é necessário "ler o passado no presente"

Flavio Florido/Folha Imagem
O teórico Nicolas Bourriaud, atual curador da Bienal de Moscou


FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em 1998, o crítico e curador francês Nicolas Bourriaud publicou "Esthétique Relationnelle" (estética relacional), um livro que abordava o método de criação de um grupo de artistas influentes nos anos 90, entre eles Rirkrit Tiravanija, Dominique Gonzalez-Foester, Marcel Broodthaers e Felix Gonzalez-Torres.
Traduzido em 12 línguas, o livro, que se tornou uma das melhores formas de observação da produção contemporânea, vê a arte como "um estado de encontro" e a essência da humanidade como "puramente trans-individual, feita por vínculos que conectam as pessoas em formas sociais, invariavelmente históricas". Em resumo, a arte contemporânea discute "como viver junto", justamente o título da Bienal de São Paulo.
Na última terça, Bourriaud, que já foi diretor do Palais de Tokyo, em Paris, e é curador da Bienal de Moscou, falou no quinto seminário da mostra, "Trocas". Lá, a curadora Lisette Lagnado explicou que chegou ao "como viver junto" a partir das propostas dos anos 60 e 70 de Hélio Oiticica (1937-1980), artista que não consta do livro do francês. Apesar de partirem de princípios distintos, ambos, Lagnado e Bourriaud, chegaram a conceitos parecidos, usando artistas históricos como referência. Leia a seguir, porque o passado é tão importante, segundo o curador.

FOLHA - O que você achou desta edição da Bienal?
NICOLAS BOURRIAUD
- É uma bienal muito boa, pois ela resume o que está acontecendo nas artes desde o início dos anos 90 e com um claro ponto de vista histórico. Em 1996, eu curei uma mostra com o mesmo tema, chamada "Trafic", incluindo Maurizio Catelan, Gabriel Orozco, entre outros. Naquela época, eles não eram conhecidos, mas foi importante, porque ali se cristalizou uma situação que passaria a ser dominante a partir de então. Foi a primeira exposição que partiu da idéia de "relação" como tema, e há muitas variações desse tema que podem ocorrer, não quero brigar pelos direitos autorais dele, pois ele veio da observação do mundo da arte, eu apenas busquei encontrar um ponto comum.

FOLHA - E quando você tomou conhecimento de que Oiticica também podia ser inserido neste grupo?
BOURRIAUD
- Houve uma boa mostra sobre Oiticica em Paris [galeria nacional do Jeu de Paume, 1992], e foi quando suspeitei que havia outro artista que podia ser incluído na estética relacional, antes mesmo da criação desse conceito, como o que fiz com Gordon Matta-Clark no livro. Há outro artista, o Tom Marioni, que vive em São Francisco e, em 1917, fez o trabalho "Beber Cerveja com os Amigos É a Mais Alta Forma de Arte", que é muito próximo do que faz Tiravanija, hoje.

FOLHA - Essa obra, aliás, estava na Bienal de Lyon, que você organizou no ano passado. Você, então, acha válido apresentar trabalhos históricos, como ocorre na Bienal de São Paulo, com Matta-Clark?
BOURRIAUD
- Acho muito importante lutar contra a amnésia! Da mesma forma que as vanguardas radicais do início do século 20 foram baseadas na idéia de futuro, é muito possível que a modernidade do século 21 (eu não gosto do conceito "pós") seja baseada em leituras do passado. No século passado, o futuro era o modelo de leitura do presente, hoje, talvez, o passado seja o modelo de leitura. Isto ocorre por conta da padronização do planeta, que apaga a memória, e a melhor forma de lutar contra isso é não voltar ao passado, mas ler o passado no presente, buscar novos itinerários no passado e isso é muito importante. Busquei fazer isso em Lyon e vejo isso em SP.

FOLHA - No seminário você disse que as artes plásticas haviam tomado o lugar do cinema que, nos anos 60 e 70, era quem trazia novidades. Por quê?
BOURRIAUD
- Primeiro, por razões econômicas. Produzir e apresentar um vídeo numa galeria é muito mais barato que realizar um filme para o circuito internacional. A economia, no mundo da arte, é muito mais fácil para esse tipo de projeto. Há cineastas como Chantal Akerman ou Amos Gitai, entre outros, que agora participam de mostras. É um novo fenômeno, que possibilita um novo tipo de relação, de produção rápida e barata.

FOLHA - Um dos membros do Jamac, também na Bienal de São Paulo, disse que agora acreditava ser possível transformar o mundo só pela arte...
BOURRIAUD
- É o mesmo fenômeno. Arte é o lugar da experimentação. Onde há qualquer espaço para experimentação na política? Arte, de certa forma, é sempre mediação do mundo. Mesmo que seja usada a escala 1:1, será sempre diferente da realidade, porque é arte. É possível experimentar porque arte lida com algo que poderia ser realidade, mas leva os participantes para um outro domínio, um outro campo, dando várias possibilidades que a política não permite mais.

São Paulo, segunda-feira, 16 de outubro de 2006

EM BUSCA DO TEMPO DESTRUÍDO


O escritor alemão W.G. Sebald discute a importância da noção de memória em suas obras e explica por que usa fotografias em seus romances

Michaël Zeeman
especial para o "La Vanguardia"

A condição de emigrado impregnou a obra do escritor W.G. Sebald (1944-2001). Na entrevista a seguir, realizada pouco antes de sua morte e até agora inédita, o autor de "Os Emigrantes" e "Os Anéis de Saturno" (ambos pela Record) aborda várias questões relacionadas à memória, à língua e ao duvidoso estatuto documental da literatura realista.

O senhor é um escritor de origem alemã residente na Inglaterra, onde vive há bastante tempo. De onde procede o seu fascínio por emigrantes? É uma experiência pessoal transferida para a prática literária?
Provém de mais longe, embora esteja muito relacionado ao fato de que também deixei meu país quando tinha cerca de 21 anos. Comecei a estudar na Alemanha, mas logo depois parti para a Suíça, a parte francesa, um ambiente lingüístico diferente, e, depois de um ano e meio, fui para a Inglaterra. De todo modo, se retrocedermos mais, encontraremos outras referências históricas em minha família, as histórias de meus tios, que deixaram o sul da Baviera no final da década de 1920, na época da Grande Depressão, e foram para Nova York. Minha mãe foi a única de todos os irmãos que ficou na Alemanha.


Você ainda tem a possibilidade de utilizar alguns dos truques em que se baseiam as novelas policiais


Em 1933, ano em que os nazistas chegaram ao poder, eu ainda não estava suficientemente crescido para emigrar. Se Hitler tivesse surgido alguns anos depois, é provável que minha mãe tivesse acompanhado seus irmãos para Nova York e eu não tivesse nascido. Em todo caso, não com esta forma, estas dimensões ou esta figura. De modo que, por uma razão ou outra, trata-se de um tema muito próximo para mim. Além disso, de modo paradoxal, minhas duas irmãs tampouco vivem na Alemanha. Parece que temos a necessidade de nos expatriar sozinhos...

Daí vem seu interesse pelos emigrantes e por seu país e lugar de origem. O que obtém voltando às origens de seus personagens?
Por breve que seja o período que alguém passe no lugar de nascimento, mesmo que seja somente uma década, somente a infância, sempre fica. Creio que a paisagem original determina boa parte do caráter e a forma de reagir das pessoas. E me parece que essa marca nunca se perde. Quando você tem 22 anos e deixou seu país há apenas alguns anos, não sente saudade; no entanto pouco a pouco o sentimento vai se apoderando de você e, quanto mais se encolhe o horizonte do futuro, parece que mentalmente os contornos de seu lugar de origem vão adquirindo maior proeminência.

Alguns de seus personagens tentam desmentir suas origens ou mesmo escondê-las.
Sim, esse é o traço diferenciador entre minha experiência e a experiência da emigração judaica, da emigração forçada: a necessidade que muitos judeus sentiram de esconder suas origens e assim poder se integrar ao ambiente de acolhida. A tentativa de esconder ou disfarçar as origens me parece mais associada à comunidade judaica do que ao resto dos emigrantes alemães, como é meu caso.

De todo modo, o senhor tende a oferecer uma espécie de reflexo dessa tentativa de esconder as origens e o faz relacionando o presente ao passado.
É que levamos o passado conosco. Se alguém quer saber para onde vai, para onde é mais provável que vá, tem de conhecer as forças do passado. Estou convencido de que muita gente não percebe as pautas do passado, mas, se tiver certa educação e determinados conhecimentos sobre o que aconteceu na primeira metade do século 20 ou nos séculos 18 e 19 terá condições de entendê-lo melhor, de perceber que é uma espécie de programa que nem sequer foi interiorizado, mas faz parte do caráter pessoal e determina o lugar em que o indivíduo acabará, em que acabaremos todos.

É como se o narrador, pelo simples fato de tocar uma pedra de um muro, descobrisse que toda a história lhe cai em cima.
Sim.

E de uma maneira dolorosa e dominante.
Até certo ponto, o futuro não interessa a mim nem à figura do narrador. Tenho a sensação de que o futuro é mais um elemento destruidor. Por outro lado, o passado, por mais terrível que seja, com todos os seus desastres, pode parecer uma espécie de refúgio, porque a dor experimentada no passado já terminou. Já não é uma dor dilacerante, é uma dor amortecida. Por isso a presença do passado tem um caráter tão ambivalente. De um lado o oprime, como um lastro; de outro o libera das limitações do presente.

E não fica reduzido apenas a uma via de escape?
Oh, não, não. Absolutamente. Tento mantê-lo o mais distante possível de qualquer perspectiva nostálgica, de qualquer interesse de antiquário. Na minha opinião, é uma tentativa de oferecer uma espécie de historiografia crítica.
Sinto a necessidade de afirmar a idéia de que nossa vida não somente é determinada pelos grandes acontecimentos do passado, mas que todos os pequenos fragmentos de história contribuem para um processo de evolução de dimensões cada vez mais reduzidas, do qual todos participamos, afinal. Portanto não tem absolutamente nada a ver com o fato de escapar, tampouco com nostalgia.

E o que nos explica tudo isso? Porque, quando folheamos seus livros, vemos fotografias, recortes, vemos um monte de coisas associadas a um cotidiano normal e corriqueiro. E, apesar disso, por baixo há um texto muito sutil, que tenta dar sentido a todos esses detalhes.
Sim, mas não tenho muita certeza de ser capaz de dotar de sentido tudo o que encontro. Em todo caso, há a tentativa de dar uma prova. Apesar disso, será antes de tudo um sentido estético. E me dou conta de que construir um formato decente, em prosa, com tudo o que encontro de forma casual, é uma preocupação que, de certo modo, não tem outra ambição senão recuperar por um breve instante algo da torrente da história que cai a toda velocidade.
Por isso, entre outros motivos, incluo fotografias no texto. Porque a fotografia representa uma espécie de paradigma de tudo isso. A fotografia está destinada a se perder no fundo de uma caixa ou em um vão. É um objeto nômade, com poucas probabilidades de sobreviver, e me parece que todos experimentamos essa sensação ao encontrar acidentalmente um documento fotográfico de um parente morto ou de um desconhecido. Sentimos então uma espécie de atração pelo fato de tê-lo encontrado depois de algumas décadas. Imediatamente ele volta, cruza o umbral e diz: "Ei, um momento, eu também existi, por favor, ocupe-se de mim por um instante". São essas coisas, sem valor em si mesmas, que, não sei como, me fazem trabalhar.

Tudo parece acontecer por acaso. O senhor encontra recortes de jornal que se encaixam perfeitamente na história. É o escritor que organiza de forma inteligente todo esse material ou apenas uma pessoa afortunada que sempre encontra o jornal adequado?
Bem, de vez em quando acontecem coisas muito estranhas.

Mas o senhor parece ter um dom para colecionar recortes da imprensa.
Sim, sim, parece que sim. Eles surgem em minhas mãos.

Um dom inato...
Deve ser isso. E, mais que me desconcertar, isso me reconforta, porque creio que Adorno, a quem ainda aprecio muito, disse em certa ocasião: "Se você vai pelo bom caminho, as datas aparecem sozinhas e se oferecem, não é preciso sair a procurá-las".

Não é preciso ir tão longe. Alguém lhe explica a história de uma pessoa que teve um acidente na montanha no início do século passado e, por pura coincidência, o senhor está nos arredores desse lugar depois de 70, 80 anos, justamente no dia em que encontram o corpo. Além disso, um segundo antes de jogar fora o jornal, percebe que na realidade fala da mesma história.
Isso também me serve para desorientar o leitor.

E o consegue.
É o mesmo procedimento utilizado nas novelas policiais, onde no final tudo se encaixa em seu lugar. E, é claro, você pode utilizar bem as coincidências de modo retrospectivo. Pode utilizar os recortes de jornal que incorpora ao texto como verificação parcial do que está dizendo.

À primeira vista é estranho ver as ilustrações do livro. Não se espera que "romances livros de viagens" incluam tantas ilustrações e que estas tenham uma parte funcional no texto. Na realidade não ilustram, mas fazem o texto avançar. A frase acaba justamente antes da fotografia, e a fotografia se transforma em parte da história.
Sim, mas de todo modo você ainda tem a possibilidade de utilizar alguns dos truques em que se baseiam as novelas policiais. Porque não pode organizar tudo de maneira retrospectiva. Eu já tinha os recortes de jornal e foi necessário apenas inventar um personagem que se encaixasse neles e associá-lo ao protagonista do texto. Nesse caso, além disso, acontece que era verdade.

Essa é a chave da questão. Pareceu-me que os casos eram verdadeiros, na maioria.
Na maioria, mas inventei alguns. Por isso o leitor deve se perguntar o tempo todo: isso aconteceu de verdade ou não? Esse é um dos problemas mais importantes da ficção.


Os grandes incêndios da Segunda Guerra Mundial foram apenas os precursores dos fogos que ardem na atualidade


Os autores do século 19 sempre diziam que tinham encontrado um manuscrito num esconderijo e que, portanto, era tudo verdade. Não contavam uma história que haviam inventado, mas davam prova da vida real e, evidentemente, enquanto narradores, ainda temos que enfrentar de alguma maneira o mesmo problema. Parece-me que essa tentativa de legitimação do relato é um problema crucial.

A diferença é que o senhor não encontra nenhum manuscrito em um esconderijo, o que faz é oferecer o material original que confirma o que o autor diz.
Por isso as fotografias são tão úteis.

O senhor coleciona fotografias.
Sim, há vários anos coloco numa caixa tudo o que encontro, embora também tenha uma pequena câmera, das baratas. Às vezes você encontra as coisas mais incríveis, e, se não as documentar pessoalmente, ninguém acreditaria.

Um comentário final sobre o livro "Os Anéis de Saturno". Esse vagar pelos campos, que é ao mesmo tempo vagar pelos campos e pela história, é como se fosse um movimento concêntrico, como o dos anéis de Saturno. Mas às vezes também parece um movimento em espiral, em torno de uma espécie de centro.
Sim, é verdade. Tem algo de espiral, de redemoinho, e me parece que, na maioria de meus textos, de um modo um pouco oblíquo, é evidente que o centro escuro de tudo é o passado alemão, entre os anos de 1925 e 1950, do qual eu mesmo sou fruto. Nasci em 1944, num lugar idílico aonde a guerra nunca chegou. Mas, quando penso nesse ano, não posso me abstrair do fato de que sei o que aconteceu no último ano de guerra: meu país natal bombardeado, as deportações para os lugares mais horríveis que se possa imaginar, a onipresença, porque não aconteceu somente em alguns lugares, mas em quase toda a Europa... Apesar de ter 21 anos quando deixei a Alemanha, levei comigo esse desastre e sua magnitude e ainda não consegui descarregá-lo em lugar nenhum.

E esse enlaçar o presente e o passado, uni-los novamente, dar continuidade à história, é uma maneira de honrar um tempo não vivido ou é uma visão crua de nossa história coletiva?
Na realidade é uma visão bastante crua de nossa história coletiva. Determinados aspectos a tornam suportável e tentamos não esquecê-los; mas em conjunto, visto de longe como um fenômeno evolutivo, dá a impressão de que o modo como evoluímos é uma grande aberração. Uma espécie de erro de cálculo da matriz da evolução. E, claro, somos cada vez mais conscientes disso. Os grandes incêndios da Segunda Guerra Mundial foram apenas os precursores dos fogos que ardem na atualidade.
Pode parecer uma perspectiva quase amoral se se pensar nas cidades e nos cadáveres em chamas da década de 1940 e então os associar, como faço freqüentemente, às imagens das florestas em chamas de Bornéu ou da Amazônia. Seria hipócrita olhar para trás, para os anos 1940-1945, e dizer que foi uma época terrível. Creio que ainda estamos plenamente nessa época.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

A TORRENTE DA CONSCIÊNCIA

OLIVER SACKS

Divulgação
Estudo fotográfico do francês Étienne Jules Marey (1830-1904)


É POSSÍVEL QUE O FLUXO DO PENSAMENTO SEJA SÓ UMA ILUSÃO SIMILAR À DO CINEMA E GERE MOVIMENTO A PARTIR DE SEQÜÊNCIAS DE IMAGENS INSTANTÂNEAS

"O tempo", diz Jorge Luis Borges, "é a substância da qual sou feito. O tempo é um rio que me carrega, mas eu sou o rio...". Nossos movimentos, nossas ações, se estendem no tempo, assim como o fazem nossas percepções, nossos pensamentos, o conteúdo da consciência. Vivemos no tempo, organizamos o tempo, somos criaturas totalmente temporais. Mas será que o tempo no qual vivemos, ou pelo qual nos pautamos, é contínuo, como o rio de Borges? Ou ele é mais comparável a uma corrente ou a um trem, uma sucessão de momentos distintos, como contas num colar? David Hume, no século 18, era a favor da idéia dos momentos distintos, e, para ele, a mente "não passa de um feixe ou coleção de percepções diferentes que se sucedem com rapidez inconcebível e que estão em fluxo e movimento perpétuos". Para William James, em seu "Principles of Psychology" (1890), "a visão humeana", como ele a chamava, era ao mesmo tempo poderosa e exasperadora. Para começo de conversa, ela parecia contrariar a intuição. Em seu célebre capítulo sobre o "fluxo do pensamento", James enfatizou que, para aquele que a possui, a consciência parece sempre ser contínua, "sem brecha, ruptura ou divisão", jamais "recortada em pedaços". O conteúdo da consciência pode mudar continuamente, mas avançamos suavemente de um pensamento a outro, de uma percepção a outra, sem interrupções ou quebras. Para James, o pensamento flui, e foi por isso que ele introduziu o termo "fluxo de consciência". Mas se perguntou: "Será que a consciência é realmente descontínua (...), ou será que apenas parece ser contínua diante de si mesma, em razão de uma ilusão análoga à do zootrópio?"

Paradoxo do movimento
Antes de 1830 não existia maneira de fazer representações ou imagens que tivessem movimento, a não ser que se construísse um modelo articulado, ou um teatro de bonecos. Tampouco teria ocorrido a qualquer pessoa que uma sensação ou ilusão de movimento pudesse ser transmitida por meio de imagens paradas. Como poderiam imagens transmitir movimento, se elas próprias não possuíam movimento? A própria idéia era paradoxal, uma contradição. Mas o zootrópio comprovou que imagens individuais podem, sim, ser fundidas dentro do cérebro de modo a criar uma ilusão de movimento contínuo. Era uma idéia que, pouco depois, resultaria no nascimento do cinema -a imagem em movimento ("motion picture"). Os zootrópios (e muitos outros artefatos semelhantes, conhecidos por diversos nomes) eram muito populares na época de William James, e eram poucas as famílias vitorianas de classe média que não possuíam um. Todos esses instrumentos continham um tambor ou disco sobre o qual era pintada ou colada uma série de desenhos -de animais em movimento, jogos com bola, acrobatas em movimento, plantas crescendo etc. Os desenhos podiam ser vistos um a um através de incisões radiais no tambor. Mas, quando esse tambor era colocado em movimento, os desenhos distintos passavam em rápida sucessão, a uma velocidade crítica, e isso de repente provocava a percepção de uma imagem em movimento, única e constante. Quando o tambor parava de se mover, a ilusão desaparecia. Embora os zootrópios geralmente fossem vistos como brinquedos que ofereciam uma ilusão mágica de movimento, eles eram projetados originalmente (com freqüência por cientistas ou filósofos) com a idéia de que pudessem servir a um objetivo muito sério: iluminar tanto os mecanismos da visão quanto os do movimento animal. Se William James tivesse escrito seu texto alguns anos mais tarde, ele poderia, de fato, ter usado a analogia de uma imagem em movimento. Um filme, com seu fluxo constante de imagens tematicamente interligadas, sua narrativa visual integrada segundo os pontos de vista e os valores do diretor, não é uma má metáfora para designar o próprio fluxo de consciência. E os recursos técnicos e conceituais do cinema -zoom, "fade-out", dissolução, omissão, alusão, associação e justaposição de todos os tipos- imitam de perto (e talvez seja essa mesma a intenção) o fluxo e os desvios da consciência.

Instantâneos da realidade
É uma analogia que Henri Bergson utilizaria 20 anos mais tarde em seu livro "Creative Evolution", de 1908, em que ele dedica uma seção inteira ao tema "O Mecanismo Cinematográfico do Pensamento e a Ilusão Mecanicista":
"Tiramos instantâneos, por assim dizer, da realidade passageira, e (...) só precisamos enfileirá-los num devir, (...) situado no fundo do aparato do conhecimento, para imitar o que existe de característico nesse próprio devir (...) Praticamente nada fazemos senão colocar em movimento uma espécie de cinematógrafo dentro de nós (...) O mecanismo de nosso conhecimento comum é de tipo cinematográfico."


O CONTEÚDO DA CONSCIÊNCIA PODE SE ALTERAR CONTINUAMENTE, MAS AVANÇAMOS SUAVEMENTE DE UM PENSAMENTO A OUTRO, DE UMA PERCEPÇÃO A OUTRA, SEM INTERRUPÇÕES OU QUEBRAS


Estariam James e Bergson intuindo uma verdade quando compararam a percepção visual -e, de fato, o próprio fluxo de consciência- a um mecanismo desse tipo? Seriam os mecanismos cerebrais que conferem coerência à percepção e à consciência de alguma maneira análogos às câmeras e aos projetores cinematográficos? Será que o olho/cérebro de fato "tira" instantâneos perceptivos e de alguma maneira os funde para conferir a eles um senso de continuidade e movimento? Nenhuma resposta clara surgiu durante a vida de ambos. Existe um distúrbio neurológico raro, mas dramático, que alguns de meus pacientes apresentam durante ataques de enxaqueca, quando às vezes perdem o senso de continuidade e movimento visual e, em lugar disso, enxergam uma série sincopada de imagens paradas. Esses instantâneos podem ser nítidos e suceder-se uns aos outros sem sobreposições, mas, mais comumente, são um tanto quanto embaçados, como acontece com uma exposição fotográfica longa demais, e persistem por tanto tempo que cada um continua visível quando o próximo quadro é visto. Com freqüência, três ou quatro quadros são sobrepostos um ao outro, os primeiros tornando-se cada vez mais fracos. Embora o efeito seja um pouco semelhante ao de um filme (se bem que seja um filme mal filmado e apresentado, no qual cada exposição foi longa demais para congelar o movimento totalmente, e a velocidade da apresentação seja lenta demais para alcançar uma fusão), ele também se assemelha a algumas das "cronofotografias" que E.J. Marey fazia na década de 1880, nas quais se vê toda uma gama de momentos fotográficos ou quadros temporais sobrepostos numa única chapa.

Enxaqueca
Ouvi vários relatos de efeitos visuais como esses quando, no final da década de 1960, trabalhei com grande número de pacientes que sofriam de enxaqueca e, quando escrevi sobre isso em meu livro "Migraine" (Enxaqueca), de 1970, observei que o ritmo das oscilações nesses episódios parecia ser de 6 a 12 por segundo. Nos casos de delírio provocado pela enxaqueca, também podia ocorrer uma sucessão de desenhos caleidoscópicos ou alucinações. (Nesses casos, as oscilações podiam se acelerar para restaurar a aparência de movimento normal ou de uma alucinação continuamente modulada.) Não tendo encontrado relatos confiáveis sobre o fenômeno na literatura médica -o que talvez não fosse inteiramente surpreendente, em vista do fato de tais ataques serem breves, raros e dificilmente previstos ou provocados-, utilizei o termo "visão cinematográfica" para descrevê-los, já que os pacientes sempre os comparavam a filmes projetados lentamente demais. Era um fenômeno visual espantoso, para o qual, na década de 1960, não existia explicação fisiológica convincente. Mas não pude deixar de me indagar, na época, se a percepção visual não poderia, de maneira muito real, ser análoga à cinematografia, captando o ambiente visual em quadros instantâneos breves, ou "stills" e, sob condições normais, fundindo esses instantâneos para conferir à consciência visual o movimento e a continuidade habituais -uma "fusão" que, ao que parecia, estava deixando de acontecer sob as condições extremamente anormais criadas por ataques de enxaqueca. Efeitos visuais como esses também podem ocorrer em certos tipos de ataques e, ainda, em episódios de intoxicação (especialmente por alucinógenos como o LSD). E há outros efeitos visuais que podem ocorrer. Objetos em movimento podem deixar uma espécie de borrão na direção em que se movem; imagens podem se repetir, e impressões visuais ("afterimages") podem ser muito prolongadas. Já tive essa experiência eu mesmo depois de consumir "sakau", um alucinógeno popular na Micronésia. Descrevi alguns desses efeitos num diário e, mais tarde, em meu livro "The Island of the Colorblind" (A Ilha dos Daltônicos): "Pétalas fantasmagóricas partem como raios de uma flor sobre nossa mesa, formando como que um halo em torno dela; quando a flor é movida (...) ela deixa um leve rastro, um borrão visual (...) em sua esteira. Observando o movimento de uma palmeira, vejo uma sucessão de imagens paradas, como um filme que é projetado devagar demais, de modo que sua continuidade não é mantida." Já ouvi relatos notavelmente semelhantes, no final dos anos 1960, de alguns de meus pacientes pós-encefalíticos, quando eram "despertados" e superestimulados pelo uso da droga L-dopa. Alguns pacientes descreviam uma visão cinematográfica; outros falavam de "imagens congeladas" extraordinárias, às vezes se prolongando por horas, durante as quais não apenas o fluxo visual era interrompido, como também o fluxo do movimento, da ação, do próprio pensamento.

Inundação repentina
Esses congelamentos de imagem eram especialmente graves no caso de uma paciente, Hester Y. Certa vez fui chamado à enfermaria porque ela tinha começado a encher a banheira para tomar banho, e o banheiro estava inundado. Eu a encontrei em pé, totalmente parada, no meio da inundação.
Quando a toquei, ela deu um salto e perguntou: "O que aconteceu?"
"Diga-me você", respondi. Ela contou que tinha começado a encher a banheira e que a água na banheira já chegava a uma polegada de altura... e então eu a toquei, e ela de repente se deu conta de que a água devia ter transbordado da banheira e inundado o recinto. Mas ela estivera parada, congelada naquele momento perceptivo em que havia apenas uma polegada de água na banheira. Congelamentos de imagem como esses mostram que a consciência pode ser parada, interrompida, por períodos de tempo substanciais, enquanto as funções automáticas, não conscientes, como a respiração e a manutenção da postura, continuavam como antes.


EXISTE UM DISTÚRBIO NEUROLÓGICO RARO, MAS DRAMÁTICO, QUE ALGUNS PACIENTES APRESENTAM DURANTE ATAQUES DE ENXAQUECA, QUANDO PERDEM O SENSO DE CONTINUIDADE E MOVIMENTO VISUAL E ENXERGAM UMA SÉRIE SINCOPADA DE IMAGENS PARADAS


Outro exemplo marcante de congelamento perceptivo pode ser demonstrado por uma ilusão visual comum, a ilusão do cubo de Necker. Normalmente, quando olhamos para esse desenho em perspectiva de um cubo, a perspectiva muda a cada poucos segundos, primeiro aparentando se projetar, depois recuar, e, por mais que nos esforcemos, não conseguimos impedir essa mudança de perspectiva. O desenho em si não muda, nem tampouco a imagem formada na retina. A mudança é um processo que ocorre no córtex, um conflito na própria consciência, à medida que ela oscila entre interpretações perceptivas alternativas. Essa troca ou mudança ocorre em todos os sujeitos normais e pode ser observada com as imagens cerebrais funcionais. Mas um paciente pós-encefalítico, em estado de congelamento visual, pode enxergar a mesma perspectiva imutável durante minutos ou até horas. Ao que parecia, o fluxo normal da consciência não apenas podia ser fragmentado, quebrado em pedaços pequenos, como instantâneos, como também podia ser suspenso de maneira intermitente, por horas a fio. Achei isso ainda mais intrigante e bizarro do que a visão cinematográfica, pois desde a época de William James se aceita, de maneira quase axiomática, que a consciência flui e se modifica eternamente, por sua própria natureza -mas agora minha própria experiência clínica colocava até isso em dúvida.

Quadros congelados
Assim, eu estava pronto para me sentir ainda mais fascinado quando, em 1983, Joseph Zihl e seus colegas em Munique publicaram um caso único, descrito de maneira muito completa, de cegueira ao movimento: uma mulher que, após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC), se tornara permanentemente incapaz de apreender o movimento (o AVC danificara as áreas específicas do córtex visual que fisiologistas tinham demonstrado, em animais de laboratório, serem cruciais à percepção do movimento). Nessa paciente, que designavam por L.M., havia "quadros congelados" que duravam vários segundos, durante os quais a paciente enxergava uma imagem parada prolongada e não tomava conhecimento visual de qualquer movimento à sua volta, embora seu fluxo de pensamentos e percepções fosse, fora isso, normal. Por exemplo, L.M. podia iniciar uma conversa com uma amiga que estava em pé à sua frente, mas não conseguir enxergar os lábios de sua amiga se movendo, nem ver suas expressões faciais se modificando. E, se um amigo se movimentasse para trás dela, L.M. podia continuar a "enxergá-lo" à sua frente, mesmo que sua voz agora estivesse vindo de trás dela. Ela podia enxergar um carro "congelado" a uma distância considerável dela, mas, quando tentava atravessar a rua, constatar que o carro estava quase junto a ela. Ela enxergava uma "geleira", um arco congelado de líquido, saindo do bico da chaleira, mas então se dava conta de que enchera sua xícara demais e de que ela transbordara. Essa condição lhe provocava confusão e perplexidade e, às vezes, a colocava em perigo. Existem diferenças claras entre a visão cinematográfica e a espécie de cegueira de movimento descrita por Zihl; e também, possivelmente, entre ela e os prolongados congelamentos visuais e às vezes globais vividos por alguns pacientes pós-encefalíticos. Essas diferenças levam a crer que deve existir uma série de mecanismos ou sistemas diferentes para a percepção do movimento e a continuidade da consciência visual -e isso corresponde às evidências obtidas com experimentos perceptivos e psicológicos. Alguns desses mecanismos, ou todos, podem deixar de funcionar da maneira devida diante de determinadas intoxicações, alguns ataques de enxaqueca e algumas formas de danos cerebrais -mas será que também podem se revelar sob condições normais? Um exemplo óbvio vem à mente, exemplo esse que muitos de nós já vimos e que talvez tenha despertado nossa curiosidade quando observamos objetos que giram de maneira regular -ventiladores, rodas, pás de hélices- ou quando passamos por cercas ou grades, quando a continuidade normal do movimento parece ser interrompida. Assim, ocasionalmente, quando estou deitado na cama, olhando para o ventilador de teto em meu quarto, as pás da hélice parecem repentinamente inverter a direção de seu movimento por alguns segundos e então, de maneira igualmente repentina, voltar a seu movimento original. Às vezes a impressão é de que o ventilador fica hesitante ou parado e, outras vezes, de que surgiram no aparelho pás adicionais ou faixas escuras que são mais largas do que as pás.

As rodas da carruagem
É semelhante ao que acontece quando, num filme, as rodas de uma diligência às vezes aparentam mover-se lentamente para trás ou, então, mal estar em movimento. Essa ilusão das rodas da carruagem, como é conhecida, reflete uma falta de sincronização entre a velocidade da filmagem e a velocidade das rodas que giram. Mas posso ter uma ilusão de roda de carruagem na vida real, bastando para isso olhar para o ventilador enquanto o sol da manhã invade meu quarto, banhando tudo numa luz contínua e regular. Será, então, que existe alguma oscilação ou falta de sincronização em meus próprios mecanismos perceptivos -algo análogo à ação de uma câmera cinematográfica?
Dale Purves e seus colegas da Universidade Duke estudaram as ilusões de roda de carruagem em grande detalhe e confirmaram que esse tipo de ilusão ou percepção equivocada é universal. Depois de excluir qualquer outra causa de descontinuidade (iluminação intermitente, movimentos oculares etc.), eles concluem que o sistema visual processa informações "em episódios seqüenciais", à velocidade de 3 a 20 desses episódios por segundo. Normalmente, essas imagens seqüenciais são apreendidas como um fluxo perceptivo contínuo.


O SISTEMA VISUAL PROCESSARIA INFORMAÇÕES EM EPISÓDIOS SEQÜENCIAIS, À VELOCIDADE DE 3 A 20 DESSES EPISÓDIOS POR SEGUNDO; NORMALMENTE, ESSAS IMAGENS SEQÜENCIAIS SÃO APREENDIDAS COMO UM FLUXO PERCEPTIVO CONTÍNUO


De fato, sugerem Purves e seus colaboradores, é possível que achemos o cinema convincente precisamente porque nós mesmos fragmentamos o tempo e a realidade de maneira semelhante ao que faz a câmera cinematográfica, em quadros distintos, que então remontamos num fluxo aparentemente contínuo. Na visão de Purves, é exatamente essa decomposição daquilo que vemos em uma sucessão de momentos que capacita o cérebro a detectar e computar o movimento, pois tudo o que ele precisa fazer é tomar nota das posições distintas dos objetos entre "quadros" sucessivos e, a partir deles, calcular a direção e velocidade do movimento.

Apreendendo o movimento
Mas isso não basta. Nós não calculamos o movimento, simplesmente, como faria um robô -o apreendemos. Apreendemos o movimento, assim como apreendemos a cor ou a profundidade, como uma experiência qualitativa única que é vital para nossa consciência visual. Alguma coisa que está além de nossa compreensão ocorre na gênese das "qualia", a transformação de uma computação cerebral objetiva em experiência subjetiva. Os filósofos discutem interminavelmente sobre a maneira como essas transformações ocorrem e se algum dia seremos capazes de compreendê-las. Os neurocientistas, de modo geral, se contentam, por enquanto, em aceitar que elas ocorrem e em dedicar-se a descobrir a base subjacente, ou os "correlatos neurais", da consciência, partindo de formas elementares de consciência tais como a percepção do movimento. William James sonhou com zootrópios como metáfora do cérebro consciente, e Bergson, da cinematografia. Mas essas eram, necessariamente, não mais do que analogias e imagens sedutoras. É apenas nos últimos 20 ou 30 anos que a ciência neurológica pôde sequer começar a tratar de questões como a base neural da consciência. De fato, o estudo neurológico da consciência, que até a década de 1970 era um tema quase intocável, transformou-se numa preocupação central, algo que atrai a atenção de cientistas em todo o mundo. Todos os níveis de consciência estão sendo explorados hoje, desde os mecanismos perceptivos mais elementares (mecanismos que são comuns a muitos outros animais além dos humanos) até os níveis mais altos da memória, da formação de imagens e da consciência auto-reflexiva. Hoje já é possível monitorar simultaneamente as atividades de uma centena ou mais de neurônios individuais no cérebro, e fazê-lo em animais sem anestesia, aos quais são atribuídas tarefas perceptivas e mentais simples. Podemos examinar a atividade e as interações de grandes áreas do cérebro por meio de técnicas de formação de imagens, como exames de ressonância magnética funcional e tomografia de emissão de pósitrons, e essas técnicas não-invasivas podem ser utilizadas com sujeitos humanos para vermos quais áreas do cérebro são ativadas nas atividades mentais complexas. Além dos estudos fisiológicos, existe um campo relativamente novo de modelagem neural computadorizada, utilizando populações ou redes de neurônios virtuais e verificando como elas se organizam em resposta a estímulos e restrições diversos. Todas essas abordagens, ao lado de conceitos que não estavam à disposição de gerações anteriores, hoje se somam para fazer da busca pelos correlatos neurais da consciência a aventura mais fundamental e mais instigante da ciência neurológica nos dias de hoje. Uma inovação crucial tem sido o "pensamento populacional" -pensar em termos que levam em conta a enorme população de neurônios existente no cérebro (cerca de 100 bilhões deles), e o poder que possui a experiência de modificar diferencialmente a força das conexões entre eles e de promover a formação de grupos funcionais, ou constelações de neurônios, em todo o cérebro -grupos esses cujas interações servem para classificar as experiências em diferentes categorias. Em lugar de enxergarmos o cérebro como rígido, fixo, programado como um computador, hoje existe um conceito muito mais biológico e poderoso de "seleção baseada na experiência", a experiência literalmente moldando a conectividade e função do cérebro (dentro de limites genéticos, anatômicos e fisiológicos, é claro).

Darwinismo neural
Tal seleção de grupos neuronais (grupos que consistem de possivelmente mil neurônios individuais, ou aproximadamente esse número), e seu efeito sobre a moldagem do cérebro ao longo da vida de um indivíduo, é vista como sendo análoga ao papel da seleção natural na evolução das espécies -e é por isso que Gerald M. Edelman, que foi pioneiro dessa linha de estudos na década de 1970, fala do "darwinismo neural". O neurologista francês J.P. Changeux se preocupa mais com as conexões entre neurônios individuais e fala do "darwinismo das sinapses". Tanto Changeux quanto Edelman vão lançar dentro em breve relatos gerais, de leitura fácil, sobre seus trabalhos.
O próprio William James sempre insistia que a consciência não é uma "coisa", mas um processo. A base neural desses processos, para Edelman, são as interações dinâmicas entre grupos neuronais em diferentes áreas do córtex (e entre o córtex e o tálamo, além de outras partes do cérebro). Ele fala de interações "reentrantes" (ou seja, recíprocas), e vê a consciência como algo que surge do número enorme de tais interações entre sistemas de memória nas partes anteriores do cérebro e os sistemas que tratam da classificação em categorias perceptivas nas partes posteriores do cérebro.


A BUSCA PELOS CORRELATOS NEURAIS DA CONSCIÊNCIA É A AVENTURA MAIS FUNDAMENTAL E MAIS INSTIGANTE DA CIÊNCIA NEUROLÓGICA NOS DIAS DE HOJE


Outros pioneiros no estudo da base neural da consciência são Francis Crick (da "dupla hélice") e seu colega mais jovem Christof Koch, que, desde o primeiro trabalho que fizeram juntos na década de 1980, vêm enfocando mais estreitamente a percepção e os processos visuais elementares. Koch oferece uma história detalhada, porém vívida e pessoal, do trabalho deles, e da busca pela base neural da consciência de modo geral, em seu livro "The Quest for Consciousness", lançado há pouco. Para Crick e Koch, os mecanismos da consciência visual constituem um ponto de partida ideal, porque são os mais abertos à pesquisa, neste momento, e porque podem servir de modelo para a pesquisa e a compreensão de formas de consciência cada vez mais elevadas. Num documento sinóptico intitulado "A Framework for Consciousness", publicado em fevereiro de 2003 na "Nature Neuroscience", Crick e Koch especulam sobre os correlatos neurais da percepção do movimento, sobre como a continuidade visual é percebida ou construída e, por extensão, sobre a aparente continuidade da própria consciência. Eles propõem que "a consciência (no que diz respeito à visão) é uma série de instantâneos estáticos, com o movimento "pintado" sobre eles (...) [e] que a percepção se dá em momentos distintos." Fiquei espantado quando primeiro topei com esse trecho, alguns meses atrás, porque a formulação deles parecia basear-se no mesmo conceito de consciência que James e Bergson tinham apresentado um século atrás e que estivera em minha cabeça desde que primeiro ouvi os relatos feitos por meus pacientes de enxaqueca sobre visão cinematográfica, na década de 1960. Mas aqui havia algo mais, um possível substrato da consciência baseado na atividade neuronal. Mas os "instantâneos" que Crick e Koch postulam não são uniformes, como instantâneos cinematográficos. Para eles, é pouco provável que a duração dos instantâneos sucessivos seja constante; além disso, o tempo de um instantâneo de forma, por exemplo, pode não coincidir com o de um instantâneo de cor. Embora esse mecanismo de "criação de instantâneos" para as percepções sensórias visuais seja provavelmente bastante simples e automático, um mecanismo neural de ordem relativamente baixa, cada objeto de percepção visual precisa incluir um grande número de atributos visuais, todos eles unidos em algum nível pré-consciente. Como, então, é que os diversos instantâneos são "montados" para alcançar a aparente continuidade, e como eles alcançam o nível da consciência?

Coalizões neurais
Enquanto um movimento específico, por exemplo, pode ser representado por neurônios disparando em velocidade específica nos centros de movimento do córtex visual, esse é apenas o início de um processo elaborado. Para alcançar a consciência, esses disparos neuronais, ou alguma representação superior deles, precisam ultrapassar um certo limiar de intensidade e ser mantidos acima dele. A consciência, para Crick e Koch, é um fenômeno de patamar. Para isso, esse grupo de neurônios precisa fazer uma conexão com outras partes do cérebro (normalmente nos lobos frontais) e aliar-se a milhões de outros neurônios para formar uma "coalizão". Tais coalizões, concebem Crick e Koch, podem se formar e se dissolver em uma fração de segundo. Elas envolvem conexões recíprocas entre o córtex visual e muitas outras áreas do cérebro. Essas coalizões neurais em diferentes partes do cérebro "conversam" umas com as outras, numa interação contínua de ida e volta. Assim, uma única percepção visual consciente pode implicar em atividades paralelas e mutuamente influentes de bilhões de células nervosas.
Finalmente, a atividade de uma coalizão, ou coalizão de coalizões, se ela quiser alcançar a consciência, precisa não apenas atravessar um limiar de intensidade, mas também ser mantida ali por um certo tempo -aproximadamente cem milésimos de segundo. É essa a duração de um "momento perceptivo".
Para explicar a aparente continuidade da consciência visual, Crick e Koch sugerem que a atividade da coalizão demonstra histerese, ou seja, um retardamento persistente do estímulo. Essa idéia é muito semelhante, de certo modo, às teorias sobre a persistência da visão aventadas no século 19. Em seu livro "Physiological Optics", de 1860, Herman Helmholtz escreveu: "Tudo o que é preciso é que a repetição da impressão seja rápida o suficiente para que o efeito posterior de uma impressão não tenha terminado perceptivelmente antes da chegada da impressão seguinte". Helmholtz e seus contemporâneos supunham que esse efeito posterior ocorresse na retina, mas, para Crick e Koch, ela ocorre nas coalizões de neurônios no córtex. Em outras palavras, o senso de continuidade resulta da sobreposição contínua de momentos perceptivos sucessivos. É possível que as formas de visão cinematográfica que descrevi -com imagens paradas nitidamente separadas ou com essas imagens embaçadas e se sobrepondo- representem anormalidades de excitabilidade nas coalizões, com histerese demais ou de menos.
Sob condições normais, a visão é contínua, sem interrupções, e não oferece indicativo algum dos processos dos quais depende. Precisa ser decomposta, experimentalmente ou em desordens neurológicas, para revelar seus elementos. É sobretudo a visão decomposta (imagens oscilantes, perseverantes ou temporalmente embaçadas sob certas condições de enxaqueca forte ou certas intoxicações) que dá credibilidade à idéia de que a consciência é composta de momentos distintos.


PARA CRICK E KOCH, OS MECANISMOS DA CONSCIÊNCIA VISUAL PODEM SERVIR DE MODELO PARA COMPREENDER FORMAS DE CONSCIÊNCIA CADA VEZ MAIS ELEVADAS


Seja qual for o mecanismo, a fusão de quadros ou instantâneos visuais distintos é um pré-requisito da continuidade, de uma consciência móvel e que flui. Tal consciência dinâmica provavelmente surgiu primeiro nos répteis, um quarto de bilhão de anos atrás. Parece provável que não exista fluxo algum de consciência desse tipo num anfíbio, como a rã, que não manifesta atenção, nem acompanhamento visual algum dos acontecimentos. A rã não possui um mundo visual ou uma consciência visual tal como a conhecemos, apenas uma habilidade puramente automática de reconhecer um objeto que se assemelhe a um inseto quando este entra em seu campo visual, e a habilidade de reagir, pondo sua língua para fora. Já foi dito que a visão da rã, de fato, não passa de um mecanismo para capturar moscas. Se uma consciência dinâmica e fluente permite, ao nível mais baixo, um olhar ou vasculhar contínuo e ativo, ao nível mais alto ela permite a interação da percepção e da memória, do presente e do passado. E tal consciência "primária", como diz Edelman, é altamente eficaz e altamente adaptável na luta pela vida. Partindo de uma consciência primária relativamente simples, como essa, descrevemos um salto para a consciência humana, com o advento da linguagem, da autoconsciência e de um senso explícito de passado e futuro. E é isso que confere continuidade temática e pessoal à consciência de cada indivíduo. Enquanto escrevo, estou sentado num café na Sétima Avenida, observando o mundo passar. Minha atenção se volta para um lado e para outro -uma garota de vestido vermelho passa ao lado, um homem passeando com seu cachorro engraçado, o sol finalmente emergindo de trás das nuvens. Todos esses são acontecimentos que captam minha atenção por um momento, enquanto acontecem. Por que, entre mil percepções possíveis, são essas que eu tenho? Reflexões, memórias e associações estão por trás delas. Pois a consciência é sempre ativa e seletiva -carregada de sentimentos e sentidos exclusivamente nossos, informando nossas escolhas e refundindo nossas percepções. Assim, não é simplesmente a Sétima Avenida que eu vejo, mas minha Sétima Avenida, marcada por minha própria identidade, meu eu. Christopher Isherwood inicia seu "Berlin Diary" com uma metáfora fotográfica extensa: "Sou uma máquina fotográfica com o obturador aberto, passiva, registrando, não pensando. Registrando o homem que faz a barba diante da janela em frente, a mulher de quimono, lavando o cabelo. Algum dia, tudo isso terá que ser revelado, impresso com cuidado, fixado". Mas nós nos enganamos se imaginamos que podemos ser observadores passivos, imparciais. Cada percepção, cada cena, é moldada por nós, quer saibamos disso, quer essa seja nossa intenção, ou não. Somos os diretores do filme que fazemos -mas também, em grau igual, seus sujeitos. Cada quadro, cada momento, é nós, é nosso -como diz Proust, nossas formas estão esboçadas em cada um, mesmo que não tenhamos outra existência, outra realidade, senão essa.

Gado sem dono
Mas então como nossos quadros, nossos instantâneos, se mantêm juntos? Se existe apenas o transitório, como alcançamos a continuidade? Nossos pensamentos passageiros, como diz James (numa imagem que lembra a vida dos caubóis nos anos 1880), não vagam a esmo como gado sem dono. Cada um deles é propriedade de alguém, é nosso, e carrega a marca dessa propriedade, e, também nas palavras de James, cada pensamento nasce dono dos pensamentos que o antecederam e "morre sendo propriedade, transmitindo o que é percebido como seu eu a seu próprio dono posterior".
Assim, não são apenas momentos perceptivos, simples momentos fisiológicos -embora esses sejam subjacentes a todo o resto- que parecem constituir o âmago de nosso ser, mas momentos de uma espécie essencialmente pessoal. Finalmente, então, voltamos à imagem proposta por Proust, ela própria ligeiramente reminescente da fotografia (e até mesmo de Hume), de que consistimos inteiramente de "uma coleção de momentos", mesmo que estes fluam um dentro de outro, como o rio de Borges.

Oliver Sacks, médico britânico radicado nos EUA, é autor de vários livros sobre patologias neurológicas, como "Enxaqueca", "Um Antropólogo em Marte" e "Tempo de Despertar" (Companhia das Letras)
Tradução de Clara Allain
Texto publicado originalmente na "New York Review of Books"

São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004