MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA
Já se disse que o comércio negreiro nos aproximou tanto da África que, de oceano, o Atlântico virou rio. Se o Índico, ao contrário, ainda hoje nos remete sobretudo a mistérios, é porque em grande medida o tráfico entre a costa oriental africana e as Américas encarnou a mais tênue ponte engendrada pelo tempo do cativeiro.
Macuas, macondes, angonis, chopes e demais moçambiques representavam menos de 5% dos africanos escravizados no Brasil do século 18. Não era para menos. Quem os comercializava eludia a longa rota para a América portuguesa, em cujos navios talvez imperassem os maiores índices de mortalidade da navegação moderna. Menos arriscado era vendê-los aos haréns islâmicos do golfo Pérsico, aos franceses que plantavam cana-de-açúcar em diversas ilhas do Índico ou, mais a leste, aos potentados hindus.
Foi necessário que os portos coloniais se abrissem ao comércio internacional, em 1808, para os golfos da Guiné e Angola se tornarem incapazes de arcar sozinhos com a nova escala da demanda brasileira.
Só então a rota índica se consolidou, embora de maneira nunca extravagante -os moçambiques representaram cerca de 20% do total de africanos aqui desembarcados no século 19.
Horrores na travessia
Para serem competitivos, os traficantes da seção índica lotavam seus negreiros como poucas vezes se vira, e os horrores experimentados durante a travessia oceânica tornaram-se ainda mais correntes. Numa noite de tempestade de 1843, o reverendo inglês Pascoe Grenfell Hill assegura ter visto 400 infelizes serem trancafiados em um porão de 11 m de comprimento por 6,5 m de largura e pouco mais de um metro de altura.
Na manhã seguinte, dali foram retirados 54 corpos, despedaçados na luta pelo precioso ar de umas poucas escotilhas.
Navios superlotados de homens, ressalte-se. Pois, se no Atlântico os escravos do sexo masculino suplantavam as mulheres numa proporção de 2 por 1, nos negreiros do Índico a cifra facilmente dobrava. Tratava-se de uma escolha lógica: no Rio de Janeiro, por exemplo, os homens adultos alcançavam preços 30% superiores aos das escravas.
O reverendo inglês Grenfell Hill viu 400 infelizes serem tranca-fiados em um porão de 11 m de compri-mento por 6,5 m de largura e pouco mais de um metro de altura |
Os caminhos pelos quais o tráfico índico se consolidou remetem à drumoniana constatação de que todo ato instaura uma situação. Logo, se a história dos afro-orientais é, hoje, a menos conhecida dentre todos os africanos no Brasil, isto se deve em grande parte às opções implícitas ao seu traslado.
A invisibilidade derivava da morte que os dizimava ainda nos primeiros tempos de Brasil, em proporções bem superiores às detectadas para outros grupos de africanos. Feneciam mais rápido e de modo qualitativamente distinto, conforme sugerem os inventários post-mortem do século 19: os afro-orientais padeciam sobretudo de infecções, e os oriundos dos portos atlânticos em especial de traumas.
Menor resistência
Protagonistas recentes da migração forçada, os moçambiques resistiam menos à esfera microbiana brasileira, tornando-se presas mais fáceis da disenteria e da varíola do que angolas, congos, benguelas, gêges ou nagôs, por exemplo. Por isso dispunham, em escala, de menor tempo do que estes para estreitar laços, cultivar hábitos e socializar símbolos. Para fincar raízes, enfim.
Sua invisibilidade se nutria também do esgarçado excedente masculino vigente entre eles, do qual redundavam exíguas freqüências de arranjos familiares -pouco mais de 10% dos moçambiques viviam com seus cônjuges e/ou filhos, contra um quinto dos congo-angolanos e afro-ocidentais. Se a isso se acrescenta a fragilidade microbiana, veremos o quão difícil era para um afro-oriental se aculturar e gerar descendentes, os pilares de todo processo de ressignificação cultural sólido e duradouro. Não surpreende que tão poucos entre eles conseguissem obter cartas de alforria.
Pulverização cultural
Por fim, embora vários estudos demonstrem que a escolha dos cônjuges escravizados era presidida por um critério altamente seletivo, com a endogamia por origem se impondo, também nesse aspecto os moçambiques divergiam. Os registros de casamentos depositados em arquivos do Rio de Janeiro são enfáticos a esse respeito.
Apenas um entre cada dez moçambiques se unia a um cônjuge originário da África Oriental.
Em contrapartida, de metade a três quartos dos embarcados na região congo-angolana contraíam matrimônio entre si. Presas tenras de um destino injusto, os poucos moçambiques que casavam faziam-no por meio de uma enorme pulverização cultural, igualmente derivada do exorbitante predomínio masculino.
Em um plano mais geral, esses fragmentos da trajetória afro-oriental reiteram a idéia de que a tragédia humana não tem porto de partida nem de chegada. No varejo demográfico, eles sugerem terem sido inúmeros os caminhos pelos quais a chamada crioulização (o outro nome da aculturação) vicejava -ou não- entre os africanos no Brasil.
Tantos e qualitativamente tão díspares entre si a ponto de tornar ocioso postular a existência de uma identidade "africana" entre nós, sobretudo quando o cativeiro já não passa de tecido morto.
Nada que desespere, entretanto. Afinal, parafraseando Jorge Luis Borges, coisa nenhuma no universo sabe que sua forma é única.
Manolo Florentino é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira). Escreve na seção "Autores", do Mais!.
São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006
Nenhum comentário:
Postar um comentário