OLIVER SACKS
Divulgação
| Estudo fotográfico do francês Étienne Jules Marey (1830-1904) |
É POSSÍVEL QUE O FLUXO DO PENSAMENTO SEJA SÓ UMA ILUSÃO SIMILAR À DO CINEMA E GERE MOVIMENTO A PARTIR DE SEQÜÊNCIAS DE IMAGENS INSTANTÂNEAS "O tempo", diz Jorge Luis Borges, "é a substância da qual sou feito. O tempo é um rio que me carrega, mas eu sou o rio...". Nossos movimentos, nossas ações, se estendem no tempo, assim como o fazem nossas percepções, nossos pensamentos, o conteúdo da consciência. Vivemos no tempo, organizamos o tempo, somos criaturas totalmente temporais. Mas será que o tempo no qual vivemos, ou pelo qual nos pautamos, é contínuo, como o rio de Borges? Ou ele é mais comparável a uma corrente ou a um trem, uma sucessão de momentos distintos, como contas num colar? David Hume, no século 18, era a favor da idéia dos momentos distintos, e, para ele, a mente "não passa de um feixe ou coleção de percepções diferentes que se sucedem com rapidez inconcebível e que estão em fluxo e movimento perpétuos". Para William James, em seu "Principles of Psychology" (1890), "a visão humeana", como ele a chamava, era ao mesmo tempo poderosa e exasperadora. Para começo de conversa, ela parecia contrariar a intuição. Em seu célebre capítulo sobre o "fluxo do pensamento", James enfatizou que, para aquele que a possui, a consciência parece sempre ser contínua, "sem brecha, ruptura ou divisão", jamais "recortada em pedaços". O conteúdo da consciência pode mudar continuamente, mas avançamos suavemente de um pensamento a outro, de uma percepção a outra, sem interrupções ou quebras. Para James, o pensamento flui, e foi por isso que ele introduziu o termo "fluxo de consciência". Mas se perguntou: "Será que a consciência é realmente descontínua (...), ou será que apenas parece ser contínua diante de si mesma, em razão de uma ilusão análoga à do zootrópio?"
Paradoxo do movimento Antes de 1830 não existia maneira de fazer representações ou imagens que tivessem movimento, a não ser que se construísse um modelo articulado, ou um teatro de bonecos. Tampouco teria ocorrido a qualquer pessoa que uma sensação ou ilusão de movimento pudesse ser transmitida por meio de imagens paradas. Como poderiam imagens transmitir movimento, se elas próprias não possuíam movimento? A própria idéia era paradoxal, uma contradição. Mas o zootrópio comprovou que imagens individuais podem, sim, ser fundidas dentro do cérebro de modo a criar uma ilusão de movimento contínuo. Era uma idéia que, pouco depois, resultaria no nascimento do cinema -a imagem em movimento ("motion picture"). Os zootrópios (e muitos outros artefatos semelhantes, conhecidos por diversos nomes) eram muito populares na época de William James, e eram poucas as famílias vitorianas de classe média que não possuíam um. Todos esses instrumentos continham um tambor ou disco sobre o qual era pintada ou colada uma série de desenhos -de animais em movimento, jogos com bola, acrobatas em movimento, plantas crescendo etc. Os desenhos podiam ser vistos um a um através de incisões radiais no tambor. Mas, quando esse tambor era colocado em movimento, os desenhos distintos passavam em rápida sucessão, a uma velocidade crítica, e isso de repente provocava a percepção de uma imagem em movimento, única e constante. Quando o tambor parava de se mover, a ilusão desaparecia. Embora os zootrópios geralmente fossem vistos como brinquedos que ofereciam uma ilusão mágica de movimento, eles eram projetados originalmente (com freqüência por cientistas ou filósofos) com a idéia de que pudessem servir a um objetivo muito sério: iluminar tanto os mecanismos da visão quanto os do movimento animal. Se William James tivesse escrito seu texto alguns anos mais tarde, ele poderia, de fato, ter usado a analogia de uma imagem em movimento. Um filme, com seu fluxo constante de imagens tematicamente interligadas, sua narrativa visual integrada segundo os pontos de vista e os valores do diretor, não é uma má metáfora para designar o próprio fluxo de consciência. E os recursos técnicos e conceituais do cinema -zoom, "fade-out", dissolução, omissão, alusão, associação e justaposição de todos os tipos- imitam de perto (e talvez seja essa mesma a intenção) o fluxo e os desvios da consciência.
Instantâneos da realidade É uma analogia que Henri Bergson utilizaria 20 anos mais tarde em seu livro "Creative Evolution", de 1908, em que ele dedica uma seção inteira ao tema "O Mecanismo Cinematográfico do Pensamento e a Ilusão Mecanicista":
"Tiramos instantâneos, por assim dizer, da realidade passageira, e (...) só precisamos enfileirá-los num devir, (...) situado no fundo do aparato do conhecimento, para imitar o que existe de característico nesse próprio devir (...) Praticamente nada fazemos senão colocar em movimento uma espécie de cinematógrafo dentro de nós (...) O mecanismo de nosso conhecimento comum é de tipo cinematográfico."
O CONTEÚDO DA CONSCIÊNCIA PODE SE ALTERAR CONTINUAMENTE, MAS AVANÇAMOS SUAVEMENTE DE UM PENSAMENTO A OUTRO, DE UMA PERCEPÇÃO A OUTRA, SEM INTERRUPÇÕES OU QUEBRAS
|
Estariam James e Bergson intuindo uma verdade quando compararam a percepção visual -e, de fato, o próprio fluxo de consciência- a um mecanismo desse tipo? Seriam os mecanismos cerebrais que conferem coerência à percepção e à consciência de alguma maneira análogos às câmeras e aos projetores cinematográficos? Será que o olho/cérebro de fato "tira" instantâneos perceptivos e de alguma maneira os funde para conferir a eles um senso de continuidade e movimento? Nenhuma resposta clara surgiu durante a vida de ambos. Existe um distúrbio neurológico raro, mas dramático, que alguns de meus pacientes apresentam durante ataques de enxaqueca, quando às vezes perdem o senso de continuidade e movimento visual e, em lugar disso, enxergam uma série sincopada de imagens paradas. Esses instantâneos podem ser nítidos e suceder-se uns aos outros sem sobreposições, mas, mais comumente, são um tanto quanto embaçados, como acontece com uma exposição fotográfica longa demais, e persistem por tanto tempo que cada um continua visível quando o próximo quadro é visto. Com freqüência, três ou quatro quadros são sobrepostos um ao outro, os primeiros tornando-se cada vez mais fracos. Embora o efeito seja um pouco semelhante ao de um filme (se bem que seja um filme mal filmado e apresentado, no qual cada exposição foi longa demais para congelar o movimento totalmente, e a velocidade da apresentação seja lenta demais para alcançar uma fusão), ele também se assemelha a algumas das "cronofotografias" que E.J. Marey fazia na década de 1880, nas quais se vê toda uma gama de momentos fotográficos ou quadros temporais sobrepostos numa única chapa.
Enxaqueca Ouvi vários relatos de efeitos visuais como esses quando, no final da década de 1960, trabalhei com grande número de pacientes que sofriam de enxaqueca e, quando escrevi sobre isso em meu livro "Migraine" (Enxaqueca), de 1970, observei que o ritmo das oscilações nesses episódios parecia ser de 6 a 12 por segundo. Nos casos de delírio provocado pela enxaqueca, também podia ocorrer uma sucessão de desenhos caleidoscópicos ou alucinações. (Nesses casos, as oscilações podiam se acelerar para restaurar a aparência de movimento normal ou de uma alucinação continuamente modulada.) Não tendo encontrado relatos confiáveis sobre o fenômeno na literatura médica -o que talvez não fosse inteiramente surpreendente, em vista do fato de tais ataques serem breves, raros e dificilmente previstos ou provocados-, utilizei o termo "visão cinematográfica" para descrevê-los, já que os pacientes sempre os comparavam a filmes projetados lentamente demais. Era um fenômeno visual espantoso, para o qual, na década de 1960, não existia explicação fisiológica convincente. Mas não pude deixar de me indagar, na época, se a percepção visual não poderia, de maneira muito real, ser análoga à cinematografia, captando o ambiente visual em quadros instantâneos breves, ou "stills" e, sob condições normais, fundindo esses instantâneos para conferir à consciência visual o movimento e a continuidade habituais -uma "fusão" que, ao que parecia, estava deixando de acontecer sob as condições extremamente anormais criadas por ataques de enxaqueca. Efeitos visuais como esses também podem ocorrer em certos tipos de ataques e, ainda, em episódios de intoxicação (especialmente por alucinógenos como o LSD). E há outros efeitos visuais que podem ocorrer. Objetos em movimento podem deixar uma espécie de borrão na direção em que se movem; imagens podem se repetir, e impressões visuais ("afterimages") podem ser muito prolongadas. Já tive essa experiência eu mesmo depois de consumir "sakau", um alucinógeno popular na Micronésia. Descrevi alguns desses efeitos num diário e, mais tarde, em meu livro "The Island of the Colorblind" (A Ilha dos Daltônicos): "Pétalas fantasmagóricas partem como raios de uma flor sobre nossa mesa, formando como que um halo em torno dela; quando a flor é movida (...) ela deixa um leve rastro, um borrão visual (...) em sua esteira. Observando o movimento de uma palmeira, vejo uma sucessão de imagens paradas, como um filme que é projetado devagar demais, de modo que sua continuidade não é mantida." Já ouvi relatos notavelmente semelhantes, no final dos anos 1960, de alguns de meus pacientes pós-encefalíticos, quando eram "despertados" e superestimulados pelo uso da droga L-dopa. Alguns pacientes descreviam uma visão cinematográfica; outros falavam de "imagens congeladas" extraordinárias, às vezes se prolongando por horas, durante as quais não apenas o fluxo visual era interrompido, como também o fluxo do movimento, da ação, do próprio pensamento.
Inundação repentina Esses congelamentos de imagem eram especialmente graves no caso de uma paciente, Hester Y. Certa vez fui chamado à enfermaria porque ela tinha começado a encher a banheira para tomar banho, e o banheiro estava inundado. Eu a encontrei em pé, totalmente parada, no meio da inundação.
Quando a toquei, ela deu um salto e perguntou: "O que aconteceu?"
"Diga-me você", respondi. Ela contou que tinha começado a encher a banheira e que a água na banheira já chegava a uma polegada de altura... e então eu a toquei, e ela de repente se deu conta de que a água devia ter transbordado da banheira e inundado o recinto. Mas ela estivera parada, congelada naquele momento perceptivo em que havia apenas uma polegada de água na banheira. Congelamentos de imagem como esses mostram que a consciência pode ser parada, interrompida, por períodos de tempo substanciais, enquanto as funções automáticas, não conscientes, como a respiração e a manutenção da postura, continuavam como antes.
EXISTE UM DISTÚRBIO NEUROLÓGICO RARO, MAS DRAMÁTICO, QUE ALGUNS PACIENTES APRESENTAM DURANTE ATAQUES DE ENXAQUECA, QUANDO PERDEM O SENSO DE CONTINUIDADE E MOVIMENTO VISUAL E ENXERGAM UMA SÉRIE SINCOPADA DE IMAGENS PARADAS
|
Outro exemplo marcante de congelamento perceptivo pode ser demonstrado por uma ilusão visual comum, a ilusão do cubo de Necker. Normalmente, quando olhamos para esse desenho em perspectiva de um cubo, a perspectiva muda a cada poucos segundos, primeiro aparentando se projetar, depois recuar, e, por mais que nos esforcemos, não conseguimos impedir essa mudança de perspectiva. O desenho em si não muda, nem tampouco a imagem formada na retina. A mudança é um processo que ocorre no córtex, um conflito na própria consciência, à medida que ela oscila entre interpretações perceptivas alternativas. Essa troca ou mudança ocorre em todos os sujeitos normais e pode ser observada com as imagens cerebrais funcionais. Mas um paciente pós-encefalítico, em estado de congelamento visual, pode enxergar a mesma perspectiva imutável durante minutos ou até horas. Ao que parecia, o fluxo normal da consciência não apenas podia ser fragmentado, quebrado em pedaços pequenos, como instantâneos, como também podia ser suspenso de maneira intermitente, por horas a fio. Achei isso ainda mais intrigante e bizarro do que a visão cinematográfica, pois desde a época de William James se aceita, de maneira quase axiomática, que a consciência flui e se modifica eternamente, por sua própria natureza -mas agora minha própria experiência clínica colocava até isso em dúvida.
Quadros congelados Assim, eu estava pronto para me sentir ainda mais fascinado quando, em 1983, Joseph Zihl e seus colegas em Munique publicaram um caso único, descrito de maneira muito completa, de cegueira ao movimento: uma mulher que, após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC), se tornara permanentemente incapaz de apreender o movimento (o AVC danificara as áreas específicas do córtex visual que fisiologistas tinham demonstrado, em animais de laboratório, serem cruciais à percepção do movimento). Nessa paciente, que designavam por L.M., havia "quadros congelados" que duravam vários segundos, durante os quais a paciente enxergava uma imagem parada prolongada e não tomava conhecimento visual de qualquer movimento à sua volta, embora seu fluxo de pensamentos e percepções fosse, fora isso, normal. Por exemplo, L.M. podia iniciar uma conversa com uma amiga que estava em pé à sua frente, mas não conseguir enxergar os lábios de sua amiga se movendo, nem ver suas expressões faciais se modificando. E, se um amigo se movimentasse para trás dela, L.M. podia continuar a "enxergá-lo" à sua frente, mesmo que sua voz agora estivesse vindo de trás dela. Ela podia enxergar um carro "congelado" a uma distância considerável dela, mas, quando tentava atravessar a rua, constatar que o carro estava quase junto a ela. Ela enxergava uma "geleira", um arco congelado de líquido, saindo do bico da chaleira, mas então se dava conta de que enchera sua xícara demais e de que ela transbordara. Essa condição lhe provocava confusão e perplexidade e, às vezes, a colocava em perigo. Existem diferenças claras entre a visão cinematográfica e a espécie de cegueira de movimento descrita por Zihl; e também, possivelmente, entre ela e os prolongados congelamentos visuais e às vezes globais vividos por alguns pacientes pós-encefalíticos. Essas diferenças levam a crer que deve existir uma série de mecanismos ou sistemas diferentes para a percepção do movimento e a continuidade da consciência visual -e isso corresponde às evidências obtidas com experimentos perceptivos e psicológicos. Alguns desses mecanismos, ou todos, podem deixar de funcionar da maneira devida diante de determinadas intoxicações, alguns ataques de enxaqueca e algumas formas de danos cerebrais -mas será que também podem se revelar sob condições normais? Um exemplo óbvio vem à mente, exemplo esse que muitos de nós já vimos e que talvez tenha despertado nossa curiosidade quando observamos objetos que giram de maneira regular -ventiladores, rodas, pás de hélices- ou quando passamos por cercas ou grades, quando a continuidade normal do movimento parece ser interrompida. Assim, ocasionalmente, quando estou deitado na cama, olhando para o ventilador de teto em meu quarto, as pás da hélice parecem repentinamente inverter a direção de seu movimento por alguns segundos e então, de maneira igualmente repentina, voltar a seu movimento original. Às vezes a impressão é de que o ventilador fica hesitante ou parado e, outras vezes, de que surgiram no aparelho pás adicionais ou faixas escuras que são mais largas do que as pás.
As rodas da carruagem É semelhante ao que acontece quando, num filme, as rodas de uma diligência às vezes aparentam mover-se lentamente para trás ou, então, mal estar em movimento. Essa ilusão das rodas da carruagem, como é conhecida, reflete uma falta de sincronização entre a velocidade da filmagem e a velocidade das rodas que giram. Mas posso ter uma ilusão de roda de carruagem na vida real, bastando para isso olhar para o ventilador enquanto o sol da manhã invade meu quarto, banhando tudo numa luz contínua e regular. Será, então, que existe alguma oscilação ou falta de sincronização em meus próprios mecanismos perceptivos -algo análogo à ação de uma câmera cinematográfica?
Dale Purves e seus colegas da Universidade Duke estudaram as ilusões de roda de carruagem em grande detalhe e confirmaram que esse tipo de ilusão ou percepção equivocada é universal. Depois de excluir qualquer outra causa de descontinuidade (iluminação intermitente, movimentos oculares etc.), eles concluem que o sistema visual processa informações "em episódios seqüenciais", à velocidade de 3 a 20 desses episódios por segundo. Normalmente, essas imagens seqüenciais são apreendidas como um fluxo perceptivo contínuo.
O SISTEMA VISUAL PROCESSARIA INFORMAÇÕES EM EPISÓDIOS SEQÜENCIAIS, À VELOCIDADE DE 3 A 20 DESSES EPISÓDIOS POR SEGUNDO; NORMALMENTE, ESSAS IMAGENS SEQÜENCIAIS SÃO APREENDIDAS COMO UM FLUXO PERCEPTIVO CONTÍNUO
|
De fato, sugerem Purves e seus colaboradores, é possível que achemos o cinema convincente precisamente porque nós mesmos fragmentamos o tempo e a realidade de maneira semelhante ao que faz a câmera cinematográfica, em quadros distintos, que então remontamos num fluxo aparentemente contínuo. Na visão de Purves, é exatamente essa decomposição daquilo que vemos em uma sucessão de momentos que capacita o cérebro a detectar e computar o movimento, pois tudo o que ele precisa fazer é tomar nota das posições distintas dos objetos entre "quadros" sucessivos e, a partir deles, calcular a direção e velocidade do movimento.
Apreendendo o movimento Mas isso não basta. Nós não calculamos o movimento, simplesmente, como faria um robô -o apreendemos. Apreendemos o movimento, assim como apreendemos a cor ou a profundidade, como uma experiência qualitativa única que é vital para nossa consciência visual. Alguma coisa que está além de nossa compreensão ocorre na gênese das "qualia", a transformação de uma computação cerebral objetiva em experiência subjetiva. Os filósofos discutem interminavelmente sobre a maneira como essas transformações ocorrem e se algum dia seremos capazes de compreendê-las. Os neurocientistas, de modo geral, se contentam, por enquanto, em aceitar que elas ocorrem e em dedicar-se a descobrir a base subjacente, ou os "correlatos neurais", da consciência, partindo de formas elementares de consciência tais como a percepção do movimento. William James sonhou com zootrópios como metáfora do cérebro consciente, e Bergson, da cinematografia. Mas essas eram, necessariamente, não mais do que analogias e imagens sedutoras. É apenas nos últimos 20 ou 30 anos que a ciência neurológica pôde sequer começar a tratar de questões como a base neural da consciência. De fato, o estudo neurológico da consciência, que até a década de 1970 era um tema quase intocável, transformou-se numa preocupação central, algo que atrai a atenção de cientistas em todo o mundo. Todos os níveis de consciência estão sendo explorados hoje, desde os mecanismos perceptivos mais elementares (mecanismos que são comuns a muitos outros animais além dos humanos) até os níveis mais altos da memória, da formação de imagens e da consciência auto-reflexiva. Hoje já é possível monitorar simultaneamente as atividades de uma centena ou mais de neurônios individuais no cérebro, e fazê-lo em animais sem anestesia, aos quais são atribuídas tarefas perceptivas e mentais simples. Podemos examinar a atividade e as interações de grandes áreas do cérebro por meio de técnicas de formação de imagens, como exames de ressonância magnética funcional e tomografia de emissão de pósitrons, e essas técnicas não-invasivas podem ser utilizadas com sujeitos humanos para vermos quais áreas do cérebro são ativadas nas atividades mentais complexas. Além dos estudos fisiológicos, existe um campo relativamente novo de modelagem neural computadorizada, utilizando populações ou redes de neurônios virtuais e verificando como elas se organizam em resposta a estímulos e restrições diversos. Todas essas abordagens, ao lado de conceitos que não estavam à disposição de gerações anteriores, hoje se somam para fazer da busca pelos correlatos neurais da consciência a aventura mais fundamental e mais instigante da ciência neurológica nos dias de hoje. Uma inovação crucial tem sido o "pensamento populacional" -pensar em termos que levam em conta a enorme população de neurônios existente no cérebro (cerca de 100 bilhões deles), e o poder que possui a experiência de modificar diferencialmente a força das conexões entre eles e de promover a formação de grupos funcionais, ou constelações de neurônios, em todo o cérebro -grupos esses cujas interações servem para classificar as experiências em diferentes categorias. Em lugar de enxergarmos o cérebro como rígido, fixo, programado como um computador, hoje existe um conceito muito mais biológico e poderoso de "seleção baseada na experiência", a experiência literalmente moldando a conectividade e função do cérebro (dentro de limites genéticos, anatômicos e fisiológicos, é claro).
Darwinismo neural Tal seleção de grupos neuronais (grupos que consistem de possivelmente mil neurônios individuais, ou aproximadamente esse número), e seu efeito sobre a moldagem do cérebro ao longo da vida de um indivíduo, é vista como sendo análoga ao papel da seleção natural na evolução das espécies -e é por isso que Gerald M. Edelman, que foi pioneiro dessa linha de estudos na década de 1970, fala do "darwinismo neural". O neurologista francês J.P. Changeux se preocupa mais com as conexões entre neurônios individuais e fala do "darwinismo das sinapses". Tanto Changeux quanto Edelman vão lançar dentro em breve relatos gerais, de leitura fácil, sobre seus trabalhos.
O próprio William James sempre insistia que a consciência não é uma "coisa", mas um processo. A base neural desses processos, para Edelman, são as interações dinâmicas entre grupos neuronais em diferentes áreas do córtex (e entre o córtex e o tálamo, além de outras partes do cérebro). Ele fala de interações "reentrantes" (ou seja, recíprocas), e vê a consciência como algo que surge do número enorme de tais interações entre sistemas de memória nas partes anteriores do cérebro e os sistemas que tratam da classificação em categorias perceptivas nas partes posteriores do cérebro.
A BUSCA PELOS CORRELATOS NEURAIS DA CONSCIÊNCIA É A AVENTURA MAIS FUNDAMENTAL E MAIS INSTIGANTE DA CIÊNCIA NEUROLÓGICA NOS DIAS DE HOJE
|
Outros pioneiros no estudo da base neural da consciência são Francis Crick (da "dupla hélice") e seu colega mais jovem Christof Koch, que, desde o primeiro trabalho que fizeram juntos na década de 1980, vêm enfocando mais estreitamente a percepção e os processos visuais elementares. Koch oferece uma história detalhada, porém vívida e pessoal, do trabalho deles, e da busca pela base neural da consciência de modo geral, em seu livro "The Quest for Consciousness", lançado há pouco. Para Crick e Koch, os mecanismos da consciência visual constituem um ponto de partida ideal, porque são os mais abertos à pesquisa, neste momento, e porque podem servir de modelo para a pesquisa e a compreensão de formas de consciência cada vez mais elevadas. Num documento sinóptico intitulado "A Framework for Consciousness", publicado em fevereiro de 2003 na "Nature Neuroscience", Crick e Koch especulam sobre os correlatos neurais da percepção do movimento, sobre como a continuidade visual é percebida ou construída e, por extensão, sobre a aparente continuidade da própria consciência. Eles propõem que "a consciência (no que diz respeito à visão) é uma série de instantâneos estáticos, com o movimento "pintado" sobre eles (...) [e] que a percepção se dá em momentos distintos." Fiquei espantado quando primeiro topei com esse trecho, alguns meses atrás, porque a formulação deles parecia basear-se no mesmo conceito de consciência que James e Bergson tinham apresentado um século atrás e que estivera em minha cabeça desde que primeiro ouvi os relatos feitos por meus pacientes de enxaqueca sobre visão cinematográfica, na década de 1960. Mas aqui havia algo mais, um possível substrato da consciência baseado na atividade neuronal. Mas os "instantâneos" que Crick e Koch postulam não são uniformes, como instantâneos cinematográficos. Para eles, é pouco provável que a duração dos instantâneos sucessivos seja constante; além disso, o tempo de um instantâneo de forma, por exemplo, pode não coincidir com o de um instantâneo de cor. Embora esse mecanismo de "criação de instantâneos" para as percepções sensórias visuais seja provavelmente bastante simples e automático, um mecanismo neural de ordem relativamente baixa, cada objeto de percepção visual precisa incluir um grande número de atributos visuais, todos eles unidos em algum nível pré-consciente. Como, então, é que os diversos instantâneos são "montados" para alcançar a aparente continuidade, e como eles alcançam o nível da consciência?
Coalizões neurais Enquanto um movimento específico, por exemplo, pode ser representado por neurônios disparando em velocidade específica nos centros de movimento do córtex visual, esse é apenas o início de um processo elaborado. Para alcançar a consciência, esses disparos neuronais, ou alguma representação superior deles, precisam ultrapassar um certo limiar de intensidade e ser mantidos acima dele. A consciência, para Crick e Koch, é um fenômeno de patamar. Para isso, esse grupo de neurônios precisa fazer uma conexão com outras partes do cérebro (normalmente nos lobos frontais) e aliar-se a milhões de outros neurônios para formar uma "coalizão". Tais coalizões, concebem Crick e Koch, podem se formar e se dissolver em uma fração de segundo. Elas envolvem conexões recíprocas entre o córtex visual e muitas outras áreas do cérebro. Essas coalizões neurais em diferentes partes do cérebro "conversam" umas com as outras, numa interação contínua de ida e volta. Assim, uma única percepção visual consciente pode implicar em atividades paralelas e mutuamente influentes de bilhões de células nervosas.
Finalmente, a atividade de uma coalizão, ou coalizão de coalizões, se ela quiser alcançar a consciência, precisa não apenas atravessar um limiar de intensidade, mas também ser mantida ali por um certo tempo -aproximadamente cem milésimos de segundo. É essa a duração de um "momento perceptivo".
Para explicar a aparente continuidade da consciência visual, Crick e Koch sugerem que a atividade da coalizão demonstra histerese, ou seja, um retardamento persistente do estímulo. Essa idéia é muito semelhante, de certo modo, às teorias sobre a persistência da visão aventadas no século 19. Em seu livro "Physiological Optics", de 1860, Herman Helmholtz escreveu: "Tudo o que é preciso é que a repetição da impressão seja rápida o suficiente para que o efeito posterior de uma impressão não tenha terminado perceptivelmente antes da chegada da impressão seguinte". Helmholtz e seus contemporâneos supunham que esse efeito posterior ocorresse na retina, mas, para Crick e Koch, ela ocorre nas coalizões de neurônios no córtex. Em outras palavras, o senso de continuidade resulta da sobreposição contínua de momentos perceptivos sucessivos. É possível que as formas de visão cinematográfica que descrevi -com imagens paradas nitidamente separadas ou com essas imagens embaçadas e se sobrepondo- representem anormalidades de excitabilidade nas coalizões, com histerese demais ou de menos.
Sob condições normais, a visão é contínua, sem interrupções, e não oferece indicativo algum dos processos dos quais depende. Precisa ser decomposta, experimentalmente ou em desordens neurológicas, para revelar seus elementos. É sobretudo a visão decomposta (imagens oscilantes, perseverantes ou temporalmente embaçadas sob certas condições de enxaqueca forte ou certas intoxicações) que dá credibilidade à idéia de que a consciência é composta de momentos distintos.
PARA CRICK E KOCH, OS MECANISMOS DA CONSCIÊNCIA VISUAL PODEM SERVIR DE MODELO PARA COMPREENDER FORMAS DE CONSCIÊNCIA CADA VEZ MAIS ELEVADAS
|
Seja qual for o mecanismo, a fusão de quadros ou instantâneos visuais distintos é um pré-requisito da continuidade, de uma consciência móvel e que flui. Tal consciência dinâmica provavelmente surgiu primeiro nos répteis, um quarto de bilhão de anos atrás. Parece provável que não exista fluxo algum de consciência desse tipo num anfíbio, como a rã, que não manifesta atenção, nem acompanhamento visual algum dos acontecimentos. A rã não possui um mundo visual ou uma consciência visual tal como a conhecemos, apenas uma habilidade puramente automática de reconhecer um objeto que se assemelhe a um inseto quando este entra em seu campo visual, e a habilidade de reagir, pondo sua língua para fora. Já foi dito que a visão da rã, de fato, não passa de um mecanismo para capturar moscas. Se uma consciência dinâmica e fluente permite, ao nível mais baixo, um olhar ou vasculhar contínuo e ativo, ao nível mais alto ela permite a interação da percepção e da memória, do presente e do passado. E tal consciência "primária", como diz Edelman, é altamente eficaz e altamente adaptável na luta pela vida. Partindo de uma consciência primária relativamente simples, como essa, descrevemos um salto para a consciência humana, com o advento da linguagem, da autoconsciência e de um senso explícito de passado e futuro. E é isso que confere continuidade temática e pessoal à consciência de cada indivíduo. Enquanto escrevo, estou sentado num café na Sétima Avenida, observando o mundo passar. Minha atenção se volta para um lado e para outro -uma garota de vestido vermelho passa ao lado, um homem passeando com seu cachorro engraçado, o sol finalmente emergindo de trás das nuvens. Todos esses são acontecimentos que captam minha atenção por um momento, enquanto acontecem. Por que, entre mil percepções possíveis, são essas que eu tenho? Reflexões, memórias e associações estão por trás delas. Pois a consciência é sempre ativa e seletiva -carregada de sentimentos e sentidos exclusivamente nossos, informando nossas escolhas e refundindo nossas percepções. Assim, não é simplesmente a Sétima Avenida que eu vejo, mas minha Sétima Avenida, marcada por minha própria identidade, meu eu. Christopher Isherwood inicia seu "Berlin Diary" com uma metáfora fotográfica extensa: "Sou uma máquina fotográfica com o obturador aberto, passiva, registrando, não pensando. Registrando o homem que faz a barba diante da janela em frente, a mulher de quimono, lavando o cabelo. Algum dia, tudo isso terá que ser revelado, impresso com cuidado, fixado". Mas nós nos enganamos se imaginamos que podemos ser observadores passivos, imparciais. Cada percepção, cada cena, é moldada por nós, quer saibamos disso, quer essa seja nossa intenção, ou não. Somos os diretores do filme que fazemos -mas também, em grau igual, seus sujeitos. Cada quadro, cada momento, é nós, é nosso -como diz Proust, nossas formas estão esboçadas em cada um, mesmo que não tenhamos outra existência, outra realidade, senão essa.
Gado sem dono Mas então como nossos quadros, nossos instantâneos, se mantêm juntos? Se existe apenas o transitório, como alcançamos a continuidade? Nossos pensamentos passageiros, como diz James (numa imagem que lembra a vida dos caubóis nos anos 1880), não vagam a esmo como gado sem dono. Cada um deles é propriedade de alguém, é nosso, e carrega a marca dessa propriedade, e, também nas palavras de James, cada pensamento nasce dono dos pensamentos que o antecederam e "morre sendo propriedade, transmitindo o que é percebido como seu eu a seu próprio dono posterior".
Assim, não são apenas momentos perceptivos, simples momentos fisiológicos -embora esses sejam subjacentes a todo o resto- que parecem constituir o âmago de nosso ser, mas momentos de uma espécie essencialmente pessoal. Finalmente, então, voltamos à imagem proposta por Proust, ela própria ligeiramente reminescente da fotografia (e até mesmo de Hume), de que consistimos inteiramente de "uma coleção de momentos", mesmo que estes fluam um dentro de outro, como o rio de Borges.
Oliver Sacks, médico britânico radicado nos EUA, é autor de vários livros sobre patologias neurológicas, como "Enxaqueca", "Um Antropólogo em Marte" e "Tempo de Despertar" (Companhia das Letras)
Tradução de Clara Allain
Texto publicado originalmente na "New York Review of Books"
São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004