quinta-feira, 4 de setembro de 2008

NÁUFRAGO DO TEMPO

Angústia pela finitude humana marca livro inédito de poemas de Mário Peixoto

FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Sabe o que estes ponteiros querem te dizer, meu filho? Cada vez que eles andam "um a mais, um a mais, um a mais", na verdade estão te dizendo: "um a menos, um a menos, um a menos"."
A descrição do movimento do relógio feita por Mário Peixoto (1908-1992) a Walter Salles no primeiro encontro dos dois cineastas resume a maior angústia do criador de "Limite": a humanidade passa, o mundo permanece.
A dura constatação da transitoriedade, que acompanhava Peixoto desde os diários da adolescência, também transparece em "Poemas de Permeio com o Mar", reunião de textos escritos entre 1933 e 1968 e reunidos pela primeira vez em livro, a ser lançado na segunda-feira, no Rio.
Editados pela Aeroplano e Arquivo Mário Peixoto, os poemas -quase todos completamente inéditos, alguns previamente publicados em revistas- chegam às livrarias pelas mãos de Saulo Pereira de Mello, 69.
Curador dos guardados do amigo, o físico e cinéfilo Pereira de Mello recusa o título de organizador estampado no volume de "Poemas de Permeio com o Mar": "Fico até com vergonha. Não fiz mais do que atualizar linguagem, caçar vírgulas, tirar alguma coisa repetida; ele deixou tudo pronto".
O volume não foi a primeira incursão do cineasta na poesia; em 1931, mesmo ano em que mudaria os rumos do cinema com "Limite", Peixoto publicara "Mundéu", coletânea de poemas alinhados com a estética modernista, que ele depois rejeitaria (hoje são encontrados em edição da 7 Letras).
Assim, apesar de terem começado a surgir depois da naufragada tentativa de rodar "Onde a Terra Acaba", "Poemas de Permeio com o Mar" não deve ser identificado como uma mudança de rumos ocasionada pela frustração.
"Nada do que ele fazia era sucedâneo de outra coisa", afirma Pereira de Mello, que, para definir o espírito criativo do amigo, usa a imagem de um vulcão, "com o magma interno das emoções", encontrando, ora no cinema, ora na literatura, o "ponto de menor resistência" por onde escoar.

Lugar da poesia
Em seu prefácio à edição, Francisco Alvim tenta decifrar o lugar que ocupa a poesia entre os meios de expressão de Peixoto.
"Há pessoas que possuem o sentimento da poesia sem que isto as faça ter o mesmo compromisso do poeta. (...) Acho que os poemas de Mário Peixoto correspondem à primeira espécie, aquela que resulta de um compromisso menos essencial do que circunstancial com a poesia -mas nem por isso pouco verdadeiro."
Enquanto o poeta Alvim vê na obra literária de Peixoto uma expressão momentânea, falando à Folha o cineasta Sérgio Machado, 33, vê no cinema peixoteano uma expressão perene da poesia.
Tendo vasculhado por um ano e meio o Arquivo Mário Peixoto para criar seu primeiro longa-metragem -um documentário que empresta do homenageado o título "Onde a Terra Acaba", que deve estrear em março e no momento participa dos festivais de Tiradentes, em Minas Gerais, e Roterdã, na Holanda-, Machado conclui que a obra de Peixoto é um "caso raro de cinema-poesia".
Para ele, o fato de Peixoto ter despontado com "Limite" no momento em que o cinema passava de mudo a falado marca sua qualidade excepcional. Enquanto o som imprimiria qualidade narrativa ao cinema, "Limite" "aponta na direção oposta, com um parentesco muito mais próximo com a poesia", com suas "rimas visuais, repetições", diz Machado.
Talvez seja impossível definir se o enigmático Mário Peixoto foi um cineasta-poeta ou um poeta cinematográfico. Saulo Pereira de Mello, porém, frisa: nas diferentes formas de expressão que buscou, Peixoto mostrou sempre "uma unidade muito grande". "O que estava lá dentro da terra, o magma, era o mesmo", diz, valendo-se novamente de sua analogia.
Esse traço de união, o próprio título do livro nos sugere, encontra sua representação imagética mais constante nas águas do mar.
Se o fracasso da segunda incursão cinematográfica de Peixoto não seria determinante para o nascimento de sua poesia, a empreitada de "Onde a Terra Acaba" marcaria, ao menos, a aproximação crescente do cineasta com o litoral sul-fluminense, onde terminaria a vida, no Sítio do Morcego, em Angra dos Reis.
Essas águas, que já estavam no filme inconcluso, povoam os escritos do livro. Para Pereira de Mello, o mar era o retrato natural do que nomeia como "melhor explicação para a obra e a figura do Mário Peixoto: o conceito de metamorfose, o processo que evolui por fases, sob dois princípios, o da permanência e o da mudança". "O mar não tem forma, é uma metamorfose contínua; é a coisa primordial, de onde veio a vida."
O mar continua; permear-se com ele talvez fosse, para Peixoto, um modo de buscar ultrapassar a efemeridade da vida.


POEMAS DE PERMEIO COM O MAR - De: Mário Peixoto (1908-1992). Editora: Aeroplano (tel. 0/xx/21/2529-6974), co-edição com Arquivo Mário Peixoto. Primeira edição. 272 págs. R$ 20. Lançamento: segunda, dia 28, às 19h, no Empório das Letras (r. do Catete, 311, sobreloja, Rio, tel. 0/xx/21/2205-5330).

Folha de
São Paulo, sábado, 26 de janeiro de 2002

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